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Jorge Medauar*

Introdução: aspectos gerais da cultura árabe

A civilização islâmico-árabe não deixou marcas unicamente no seu passado histórico. Sua influência ainda se espraia por todo o mundo contemporâneo, numa presença rediviva em quase todas as atividades do homem.

Já se tomou redundante a afirmação de que sem os algarismos arábicos, ou sem o símbolo zero, também projetado pelos árabes, não existiria a matemática moderna e, conseqüentemente, as chamadas ciências exatas. Foi com sua absoluta confiança na verdade da teoria árabe, de que o mundo era redondo, que Cristóvão Colombo zarpou para o Ocidente. E os portugueses, enfrentando problemas técnicos de cosmografia, convocaram mestres árabes para auxiliá-los. Os sábios árabes, atraídos a Sagres, colaboraram não só na solução de aspectos de navegação, mas também contribuíram na solução de inquietações de ordem sociológica, problemas de compensação ou recuperação da população, bem como na solução de questões levantadas pelos contatos da cultura portuguesa com a dos povos estranhos. Valeram-se, assim, dos exemplos que lhes ofereciam os árabes com sua experiência e conhecimento de espaços extra-europeus.

O aumento das populações nos trópicos deu-se sob a égide do costume árabe de considerar o filho mestiço detentor de todos os direitos. E Vasco da Gama, que teve como piloto Ahmad Ibn Majid, nascido na cidade de Julgar, em Omã, de antepassados beduínos da Arábia, aprendeu com os árabes de Moçambique a técnica de construção de tanques de madeira para reservatório de água no fundo das embarcações. Com os mesmos árabes de Moçambique, aprenderam a construção de barcos com velas tecidas de palmas. Também o valor antiescorbútico das frutas cítricas foi decididamente transmitido aos portugueses por um chefe árabe.

Assim, guerreiros e sábios de Allah se espalharam, do Crescente Fértil, acima da Península Arábica, para o Ocidente. Para a França. Sicília. Espanha.

E ainda para o Oriente — China e Índia —, deixando vínculos na filosofia, nas artes, arquitetura, metalurgia, etc. Não deixa, pois, a História Árabe de ser um dos capítulos mais importante da própria História da Humanidade.

Os historiadores reconhecem que os eruditos árabes estavam mergulhados em Aristóteles quando Carlos Magno e seus nobres ainda aprendiam a rabiscar seus nomes. Diz um historiador americano, contemporâneo, que em Córdova, com suas dezessete enormes bibliotecas, uma só das quais possuía quatrocentos mil volumes, "cientistas se deliciavam com banhos luxuriosos numa época em que, na Universidade de Oxford, se considerava lavar o corpo um costume perigoso". O árabe, como é sabido e consabido, foi, por séculos, a língua da cultura e do pensamento progressivo por todo o mundo civilizado —  vale dizer, a língua do próprio conhecimento, através da qual se expressavam cientistas, filósofos e matemáticos.

Trabalhos de natureza religiosa, astronômica e geográfica foram produzidos mais em árabe do que em qualquer outra língua. E seu alfabeto, depois do latino, ainda é o mais usado em todo o mundo.

E agora será oportuno repetir as palavras de Philip Hitti, para que se tenha uma idéia menos confusa do que vem a ser "árabe" e "semita", e sobretudo para que não se percam as raízes históricas do Islamismo e do Semitismo: "Dos dois povos sobreviventes que representam a etnia semita, o árabe, muito mais que o judeu, preservou os traços físicos e mentais característicos dessa família. Sua língua, apesar de ser, do ponto de vista da literatura, a mais jovem do grupo semítico, conservou, contudo, mais que o hebraico e suas outras línguas irmãs, um número maior de peculiaridades da língua materna, inclusive a flexão”.

O Islamismo, do mesmo modo, é, na sua forma original, a perfeição lógica da religião semita. Na Europa e na América, deram à palavra 'semita' o significado de judeu, mas os 'traços semitas', que incluem o nariz proeminente, não são absolutamente semíticos. Estes característicos diferenciam o tipo judeu do semita e representam, evidentemente, uma aquisição resultante de antigo cruzamento entre os hititas-hurrianos e os hebreus". E mais adiante: "Foi na Arábia que os antepassados dos povos semitas — os babilônios, assírios, caldeus, amoritas, arameus, fenícios, hebreus, árabes e abissínios — tiveram sua origem. Aí vieram, numa época remota, como um só povo".

Quanto à presença dos elementos árabes em nossa cultura, é preciso poupar palavras, como em sua marcha o beduíno poupa água, para apertar em poucas páginas apenas um quadro reduzido dessa imensa presença, que principia com os moçárabes — cristãos arabizados da Península Ibérica que, no próprio século do Descobrimento, vieram com os colonizadores. Esses e seus descendentes — e é bom que se diga, desde já, que, para fazer descendência, o inflamado sangue árabe fervia tanto quanto o lusitano, por antiga tradição e até por gosto, na verdade, sempre ambos competindo... E nunca alguém de fora influiu tanto na nacionalidade e no nacionalismo português, desde a invasão da mouraria com seu convívio, e dos confrontos da Índia, com gentes de Gama, de Cabral, e sucessores.

Já no Brasil, as duas culturas continuaram a unir o sangue e seu suor, tendo o sangue nos dado o adjetivo morena, a da cor moura, e o suor, este verbo prestigioso: mourejar. E ainda melenizar, ou melenização, que vem a ser o bronzeamento da pele, praticada em quase todas as praias brasileiras, revelação de Gilberto Freire, para mostrar que nossos antepassados portugueses desejavam parecer tão pardos quanto os irmãos nativos das terras quentes.

As influências sociais e econômicas não caberiam neste espaço, mas em compêndios. Das influências espirituais, basta algumas sejam relembradas para se avaliar sua presença. Nem precisamos mencionar a picota, a cegonha, que retirou água nos primeiros poços nordestinos. Nem a azenha ou moinho d'água, ou a irrigação por canais, trazida dos Omíadas do sétimo século. O café. A cana. O algodão. A laranja. O bicho-da-seda. A pólvora. O papel. O rol é quase interminável.

Apenas um ou outro exemplo do criador mourisco de valores artísticos e intelectuais revela essa presença, a qual, mesmo diluída no tempo, é bem visível no que ficou do espírito árabe na arquitetura cotidiana — no gosto pelo azulejo, no mosaico. E desde os nossos tempos ancestrais, a janela de rótula. Os balcões de fachada. Os portões e gradis ornamentais. Os espessos adobes. Os vitrais coloridos. Os caprichosos chafarizes. As telhas mouriscas e, embaixo delas, as crianças em classe cantando a tabuada, e no pátio a roda da cirandinha. As mulheres de mantilha. O costume das pessoas anunciarem sua visita. A cozinha rica em especiarias. A profusão de doces. E eis que surge um nome: Abd-al-Rahman. Numa festa de paz, em seu palácio, compõe versos líricos para a palmeira solitária, em seu jardim. Ai está o lirismo árabe, que ficou nos povos que acolheram aquelas duas culturas, das quais o árabe foi na verdade origem e vetor, marcando-as com seus sinais.

Acrescenta-se ainda Jábir Ibn Hayyan — al-Geber — dando nome à álgebra. AI-Khwarizmi, denominando o algarismo. Nossa elite culta ainda se lembra de Rhazes, Avicena e Averróes. E nos hinos cristãos persistiu a poesia popular do vilancico — tudo isso pela crista sumária dos exemplos, como disse a respeito da influência árabe em nossa cultura o pesquisador, poeta e dicionarista J. Martins Ramos, que tanto nos ajudou na elaboração do trabalho A presença árabe na cultura brasileira.

Continuando com mais os exemplos do cadinho ibérico, onde se fundiu a língua, cujo ramo, vindo a nós ainda nos dá várias centenas de palavras — de A a Z —, algumas tão comuns no nosso dia-a-dia: açougue, açude, adobe, alarido, alazão, algibeira, algodão, andaime, anil, anta, armazém, arrabalde, arroba, arroz, azeite, azeitona. E para que não se diga que não passamos do A, temos bairro, beringela, cetim, cifra, elixir, enxoval, fardo, fulano, limão, marfim, nuca, oxalá, rês, roça, safra, salamaleque, sapato, sofá, taça, talco, tarifa, xadrez, xarope, xerife — e fomos até o Z: zarcão, zênite.

Não significa, porém, terem tido, tantas palavras, berço unicamente árabe. Muitas vezes vieram do grego, persa, egípcio e até do romano — e de quantos povos se incluíram na expansão islâmica no século da Hégira e seguintes. A todos os que nos transmitiram algo, ou muito da alma da cultura árabes, alguns nomes podem ser relembrados em mínima resenha, ficando apenas para significar que a cepa permanece dando fruto e flor a nosso lado. Por isso, os Prolegômenos, a Muqaddamah ou Muqaddimah, de Ibn Khaldun, estão em vernáculo, sob o patrocínio do Instituto Brasileiro de Filosofia.

Durante quarenta anos foi traduzido, direta e integralmente, pelo casal líbano-brasileiro José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury (quase duas mil páginas, de três grandes volumes, apresentados pelo poeta, ensaísta e médico Jamil Almansur Haddad). E assim se lê, em português, o gênio do século XIV, criador da teoria do Desenvolvimento Histórico, pai da Sociologia e da Filosofia Social, sem favor, um dos mais iluminados espíritos de todos os tempos.

Na linha dos mestres que vieram tocados da flama árabe, há o erudito, mestre de gerações brasileiras há mais de setenta anos, o matemático e lingüista João Tomaz Ueb. E, ao se falar em tradução e eruditos, avulta o nome de Antônio Houaiss, cuja tradução de Ulisses, de Joyce, encheria de júbilo Hunayn Ibn Ishaq, a quem o califa al-Ma'mun pagava em ouro o peso de cada livro que ele transpunha para o árabe.

Mas há ainda em nossas letras, ciências e artes, sobreviventes de um Ali Ibn Kazm, ao qual se credita a autoria de quatrocentos volumes de História, Teologia, Lógica, Poesia e outras matérias. E ainda de um Ibn al-Khatib, médico, estilista, historiador, geógrafo e filósofo. De um al-Kindi, astrólogo, alquimista, perito em ótica e teorista musical. De um Ibn Zaidun e de Omar Khayyam, embora persa, mas pertencente à galáxia islâmica. Acrescentem-se os teólogos Ibn Arabi e Mosheh Ben Maimun, o Maimonides, e os artistas da linhagem do Mucharig, que tinham uma cadeira posta junto ao trono, por Harun al-Rachid em pessoa. E quantos têm mais que um vizirato, como Ibn Zaidun, que acumulava, ao da poesia, outros bastões; e se destacam pela fama, como Baybars e Saladino.

Aqui é preciso lembrar o caso do venerando frei Abrantes (1737-1811 ou 13), primeiro professor de árabe no Brasil, vindo, como se sabe, com a família real, autor das Instituições da Língua Arabêica para uso das escolas da Ordem Terceira (1774), a primeira em seu gênero em português. E, mais recentemente, o famoso Said Ali (1861-1953), que entre outros alunos teve Oswaldo Cruz, Antenor Nascentes e o poeta Manuel Bandeira. Sua obra filológica é uma das mais importantes do nosso idioma. Evanildo Banchara focaliza-o em seus Primeiros Ensaios sobre a Língua Portuguesa.

O rol dessa descendência é crescente e sua presença vive nas letras ou nas artes, na ciência ou na filosofia, no comércio, na indústria ou na política. A poesia, o ensaio, o romance, o conto, a crítica, o teatro, o jornalismo, a música, as artes plásticas ou o cinema contam com a descendência de notáveis como Mário Neme, contista, teatrólogo, ensaísta, historiógrafo, filólogo, jornalista, humorista, diretor do Museu do Ipiranga, quando faleceu. Do já citado Antônio Houaiss, cuja bio-bibliografia encheria páginas. Cecílio J. Carneiro, médico e romancista, premiado com o romance A Fogueira. Célio Salomão Deba, David Nasser, Floriano Faissal, Emil Farhat, Mário Chamie, Mussa Kuraiem, Paulo Tacla, Permínio de Carvalho Ásfora, Raduan Nassar, primoroso estilista de Lavoura Arcaica, Salomão Jorge e o grande poeta Carlos Nejar, já agora imortalizado com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

Personagens árabes na obra de Jorge Amado

Com essa retrospectiva resumida, de tantas e tão profusas marcas árabes nas várias culturas do mundo, mas especialmente na nossa, é mais do que natural que um escritor, com raízes tão populares quanto Jorge Amado, traga, no bojo de sua tão extensa obra, a presença marcante dessa influência não apenas na língua, seu preponderante instrumento de expressão, como nos personagens árabes ou de origem árabe que se misturam tanto na "democracia racial brasileira", em geral, como particularmente no tecido de seus romances; movimentando-se entre negros, crioulos, espanhóis ou portugueses criados para viverem o drama, a tragédia, ou o amor que palpita nos romances desse autor que é o mais importante e mais expressivo escritor da "nação grapiúna", definida por Adonias Filho, outra não menos significativa expressão daquela "civilização" tão peculiar.

Jorge Amado é, na verdade, aquele que cantou tão bem a sua aldeia, com árabes, negros, etc., que se universalizou, universalizando sua terra e, por extensão, todo o país. Nenhum dos seus leitores de origem árabe ou leitores comuns, do Brasil ou de qualquer país onde estejam suas obras traduzidas, ao deparar com algum dos seus personagens árabes, não encontraria neles nada que não seja genuinamente árabe  quer nas reações, no comportamento psicológico, como na descrição física, com suas características raciais, bem como nas suas atividades de trabalho, que são, preponderantemente, o comércio.

Mas há também o malandro. O contrabandista. Ou o intelectual. Circulando em seus romances, vindos de Ilhéus, de Itabuna, Água Preta ou Salvador, seus árabes ou descendentes caminham em seu universo com a mesma naturalidade dos tabaréus, coronéis, bacharéis, prostitutas, malandros, trabalhadores de roça, capoeiristas, jagunços, gente anônima das ruas. E muitos entraram em sua obra tão marcantemente como Jubiabá, Guma, ou Tereza Batista, transformando-se no personagem principal, naquele em tomo do qual se desenrola a história ou o romance. É bem o caso de Nacib, de Gabriela, Cravo e Canela, e desse fabuloso Fadul Abdala, de Tocaia Grande, que tivemos a honra de conhecer ainda no embrião da história. Em outubro de 1983, quando Jorge Amado principiava a escrever seu romance, mandou dizer-nos, em carta: "Este meu romance da 'face obscura' está cheio. de árabes: um deles, Fadul Abdala, personagem fundamental, é porreta. Aliás, aconteceu uma coisa engraçada: para contar uns percalços de Fadul acabei escrevendo uma noveleta (45 páginas) de árabes em Itabuna, mas eu a retirei do contexto do livro onde ela pesava demasiado sobre a história do lugarejo - cujo nome é Tocaia Grande, futura Irisópolis. Mas, quando terminar o livro, voltarei a trabalhar a noveleta da luta entre Deus e o Diabo pela alma de Fadul".

Este depoimento, vindo mesmo do coração do clima em que seu personagem se movimentava e crescia, na verdade como um “porreta”, é mais do que uma simples demonstração da simpatia do romancista pelos árabes: revela sua preocupação pela legitimidade de seus personagens. Assim, Fadul não poderia ter um tratamento diferente de qualquer outro personagem genuinamente baiano, portanto brasileiro, com características pessoais ou próprias no comportamento, na fala, nas reações, nos traços físicos, elementos que marcam a autenticidade ou identidade inequívoca de cada um dos seus personagens. O que há de invenção, criação ou fantasia ficcional em muitas de suas criaturas não é gerado unicamente pelo gênio criativo de Jorge Amado — mas nasce de uma realidade conhecida.

Quem poderá dizer que Jorge Amado não conviveu, no Vesúvio, na cidade de Ilhéus, com Nacib e Gabriela, por exemplo, já que a casa do grande romancista (hoje Fundação Cultural de ilhéus) era vizinha daquele bar? Os Nazal, Medauar, Maron, Daneu, Chalub, eram famílias de Ilhéus, portanto pessoas de seu convívio. Daí a matéria-prima. O retrato. A matriz. Assim, o Abdula, comerciante em Feira de Santana, é tão legítimo quanto Nacib, o Maron ou o Daneu, que eram de verdade, da vida real. Jorge Amado tem, dentro dele próprio o modelo de seus personagens árabes. Não precisou inventar. Não é, pois, sem razão que despontam com naturalidade em quase toda a sua obra. Verdade que outros romancistas têm personagens árabes, mas nenhum apresenta mais sírios, libaneses, descendentes do que Jorge Amado. Seu rol é imenso, e ainda maior se considerarmos as misturas. Como no caso desse Antônio Bruno, com nome de brasileiro, mas com "romântico perfil de beduíno". Era neto do árabe Fuad Maluf e está em Farda, Fardão, Camisola de Dormir. Do mesmo modo, dona Fifi, mesmo com nome que nada tem de sírio ou libanês: é árabe, mãe de um malandro de dezessete anos. Está no País do Carnaval. Bia Turca, nome meio dúbio, porque apelido, está em Tereza Batista. E dona Émina Silva, esposa do Dr. Ives e mãe de "bonitas filhas", é da rua do Sodré, da Bahia, e, como os citados, descendente de sírios.

Esses personagens, muito embora diluídos na tessitura social brasileira, são, como os sinais da influência árabe, tão disseminados e muitas vezes quase imperceptíveis. Mas, quando pesquisados, como as inúmeras descendências em nossa sociedade, revelam suas origens. Cecílio J. Carneiro, aqui posto como romancista filho de árabes, nada tem no nome que denuncie sua ascendência árabe. Personagens já vêm carimbados, como que com passaporte ou cédula de identidade que diz inequivocamente de sua ascendência, aí estão, misturados com mulatos, capoeiristas, jagunços ou personalidades da sociedade baiana, de Salvador, Ilhéus ou Itabuna. como aquele Fuad Maluf, que era poeta. "Quando abdicava do metro e da tesoura, compunha poemas em árabe". Ou Abdala Curi, que tinha uma loja na Baixa do Sapateiro — Loja "Nova Beirute". Está presente e vivo em Pastores da Noite. O estudante de Direito Antonio Murad leva sua marca árabe no sobrenome. Naufragou ao largo do porto da Bahia, mas foi salvo por Guma, de Mar Morto. Asfura, que já se tornou Asfora, diz Jorge Amado que era um "sírio que se fez fazendeiro" de cacau em Ilhéus. É personagem de São Jorge dos Ilhéus. E já que tal nome, estranho entre nós, desponta em Jorge Amado, convém não esquecer do romancista Permínio Ásfora, também aqui citado (a pronúncia correta é asfura, que quer dizer passarinho). Aziz mandou buscar na Síria a sua mulher Zoraia, que deve ser Soraia, mas o nome com z ou com s acaba em pronúncia correta, só podia mesmo ser imigrante sírio, radicado em Ilhéus, pois que de lá mandou buscar na Síria a mulher e seus dois filhos: Salma, de seis, e Nacib, de quatro anos. Diz o romancista que ambos foram convenientemente registrados como natos em Itabuna, então ainda chamada Tabocas, "no cartório do velho Sigismundo". Lá estão, sobretudo, Nacib, árabe legítimo, como das figuras ou personagens principais em Gabriela Cravo e Canela, seus parentes e aderentes. Lá está Nacib circulando em Ilhéus, percorrendo sua feira, vendo as lojas dos patrícios entupidas de fregueses vindos de Água Preta, Rio do Braço, ou do Recôncavo. Parando na estação da estrada de ferro, ouvindo a cantoria dos cegos de cuia, ou cruzando com patrícios pobres, "mascates da estrada", na procura da cozinheira ideal para seu bar. Até que um dia encontrou sua Gabriela, com quem se casaria, teria filhos e continuaria integrando a população da cidade. Sem dúvida, o romancista Jorge Amado, seu vizinho, teve Nacib em pessoa como modelo, porque a criatura é tão perfeita que o criador não poderia ter tirado do nada ou unicamente da sua poderosa usina imaginativa uma criatura tão autêntica.

Ao lado de árabes dominantes, como figuras principais de romance, como Nacib ou Fadul, Jorge Amado semeia outros, de maior ou menor importância. Como um ferroviário que ficou conhecido como "Profeta". Foi preso no quartel de Policia Especial do Estado Novo, no Rio, naturalmente como comunista. Mesmo destoando das atividades abraçadas pelos árabes, só poderia ser árabe: pelo nome Elias - que poderia ser até codinome.

Chalub é filho de sírio, brasileiro de primeira geração. Era um chovinista exaltado, diz o romancista. Ora, a família Chalub, em Ilhéus, era bem conhecida do autor. E esse Chalub deve ter escapulido da vida real para o romance Dona Flor e seus Dois Maridos. Em Tereza Batista há um Chamas, velho pai de Kalil Chamas, estabelecido com antigüidades à rua Rui Barbosa.

Há um Chafik, que aparece em Os Subterrâneos da Liberdade, nos três volumes. É um sírio estranho, porque fugitivo de Caiena.

Mas sua aventura é bem árabe: matara a amante Ginette. Fugira de Caiena, onde cumpriria pena. Foi viver em Mato Grosso, onde a colônia árabe é grande e de lá se passou para o Paraguai, encontrando certo tipo de comércio bem atraente para árabes, aventureiros e contrabandistas. Em Tieta do Agreste aparece um Chalita, de "bigodaça de sultão, a barba por fazer, eterno palito nos dentes". É o dono do cinema Tupi e da sorveteria Santana do Agreste. Mamed Chalub, dono da loja "Baronesa do Mundo", na Baixa do Sapateiro, e que aparece em Os Pastores da Noite, não tem nada a ver com o outro, que aparece em Dona Flor.

F. Murad é "o árabe mais rico da cidade" da Bahia. Pai do acadêmico Antonio Murad, já mencionado. Foi Fadel, comerciante estabelecido com a “loja de fazendas na praça de Itabuna”, que testemunhou no cartório haverem Salma e seu irmão Nacib Achcar (recém-chegados da Síria) nascido no povoado de Ferradas, terra do romancista. Outro de Ferradas é Farhat, amigo do grande fazendeiro Horácio da Silveira (Terras do Sem Fim).

Quase todos os árabes de Ilhéus, como o sírio Fuad, dono de uma loja de calçados, que jogava pôquer no Vesúvio, devem ter sido recolhidos, ao vivo, como se diz, por Jorge Amado e incluídos em seus romances. Geninha Habib; o intérprete Haddad, que fora devorado pelos tubarões no naufrágio em que Guma também morreu (Mar Morto); Jacó Galub, nome meio dúbio, não se sabe bem se árabe ou judeu; Ibraim, sírio que mascateava nos arredores da Bahia; "seu" Isaque; Jamil; Najar, cirurgião-dentista em Aracaju; Abdula Farah, comerciante em Santana do Agreste, pai da filha única, Sátima; o libanês Mahul (Tenda das Milagres); Maluf, outro de Ilhéus; dona Maria, árabe muito magra, locatária de todo o sótão dum sobradão de cômodos à Ladeira do Pelourinho (País do Carnaval); Miguel Turco, árabe exaltado e secretário da Intendência Municipal de Belmont, terra do poeta Sosígenes Costa; Nicolau, gringo, fazendeiro modesto (Jubiabá); Munira; o jornalista Paulo Nacif; o cronista social Roberto Sabad (Tenda dos Milagres); Salma Saad de Castro, que outra não é senão a irmã de Nacib, já mencionada; Samara, árabe proprietário do sobradão de cômodos na ladeira do Pelourinho n.º 68; a dançarina Soraia, sempre a bailar nas histórias do comandante Vasco Moscoso de Aragão; Squeff; Tufik, um vagabundo; Zalomar; Zebedeu, garoto filho de árabe (Suor); enfim, toda uma população de árabes e descendentes palpita nos romances de Jorge Amado, muitas vezes quase anônimos, apenas mencionados por apelido ou profissionalmente. Como o "comerciante", um retardatário que se demorou a fechar a loja; a "esposa" (esposa do comerciante árabe, em Ilhéus, tio de Nacib); "libanês", açougueiro próspero; "libanesa", a esposa do açougueiro; "malandro", filho da árabe Fifi, "mascate", "sírio", "turco", "gringo", "um patrício". E até o coronel Florêncio, que não é árabe mas casado com "fogosa filha de sírios".

Tudo isso, afinal de contas, é indicação que reforça o verdadeiro sentido não apenas da chamada democracia racial brasileira, como também da influência do árabe na vida do país. E, como já foi dito, por ser Jorge Amado um verdadeiro escritor com raízes populares, sua obra teria que refletir esse caldeamento, do qual ele plasmou uma das, numericamente, maiores galerias de personagens de toda a literatura brasileira. São tantos que só poderiam ser recenseados, no seu imenso universo ficcional, se houvesse o concurso de um dicionário biográfico, como esse magnífico Criaturas de Jorge Amado, de Paulo Tavares, feito na linha e à altura do que foi feito para os personagens de ficção da Comédia Humana, de Balzac.

E, se algum mérito, finalmente, houver neste rastreamento de tantos personagens árabes na obra de Jorge Amado, — e não foram todos —, fica, desde já, aqui, atribuído ao esforço e à dedicação do autor daquela obra tão importante para a identificação das criaturas criadas ou aproveitadas pelo romancista.

Quanto a nós, como outros personagens homenageados pela amizade de Jorge Amado, incluindo-nos em sua obra, só nos resta dizer, como descendente de árabes, patrício daqueles que povoam as páginas de seus romances, que nosso orgulho, por sermos personagens do escritor brasileiro mais lido no país e no mundo, é o mesmo que sentimos quando Castro Alves, o maior poeta do Brasil, baiano como nós e Jorge Amado, resume toda a força da influência árabe entre nós, dizendo, ele mesmo, ainda que poeticamente, ter a nossa ascendência:

"Árabe errante — vou dormir à tarde

à sombra fresca da palmeira erguida"



* Romancista, contista e poeta. Artigo publicado originalmente em nossa Revista de Estudos Árabes N. 1, DLO-FFLCHUSP, 1993.