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Presença do Oriente no Teatro
de Georges Schehadé

 

Aida R. Hanania

"Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro"
(Fernando Pessoa)

Georges Schehadé, poeta e dramaturgo, um dos autores mais destacados da Literatura de expressão francesa, não se situa apenas no âmbito da Literatura Libanesa; ocupa também um lugar relevante na Literatura Francesa.

Egípcio de nascimento (Alexandria, 1910), mas de nacionalidade libanesa, Georges Schehadé descende de antiga família cristã que se viu obrigada, a exemplo de tantas outras, a emigrar por ocasião dos conflitos de 1860, entre drusos e cristãos, na montanha libanesa.

Desde muito cedo, sentiu-se atraído pelos escritores franceses, sobretudo pelos poetas. Formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão, preferindo a carreira de professor de Literatura Francesa na "Ecole Supérieure de Lettres" de Beirute (vindo a ser, mais tarde, seu secretário geral).

Instalou-se definitivamente no Líbano com a família quando ainda era adolescente. Embora tenha vivido em Beirute, sempre morou parte do ano em Paris, onde se fixou em seus últimos anos – em virtude da guerra que estava ocorrendo em seu país –; ali permaneceu até sua morte em 1989.

Preparado pelo Oriente Médio e, "provavelmente há séculos, pelo que esta parte do mundo tem de geografia humana, pelo que tem ela de cruéis conflitos religiosos (...) pelo que tem ela de relações com o resto do mundo, amargas ou benignas", como bem lembra Jamil Almansur Haddad(1), Schehadé aportou à Literatura uma visão bastante original, de raízes orientais, escrevendo em francês tão bem quanto os que melhor o façam e, seduzindo, por isso, muitos de seus contemporâneos, tais como Supervielle(2) ou Pierre Robin(3).

A cosmovisão schehadeana, tanto mais complexa quanto mais se lhe adivinha o entrelaçamento de valores mediterrâneo-ocidentais e orientais árabes, define-se pelo tratamento de temas que se voltam ao ser universal, encontrando no terreno poético e na língua francesa sua expressão mais justa e definitiva.

Andrée Chedid captou bem as raízes do autor e assim revela o processo de sua criação: "Se a alma profunda mergulha numa sabedoria milenar, no mistério de ecos longínquos, exprime-se por meio de uma forma tão burilada, que a língua francesa torna-se substância íntima da criação"(4).

A obra de Schehadé não é muito numerosa. Escreveu inicialmente, quando muito jovem, Rodogune Sinne, um romance, e L'écolier Sultan, um livro de poesias, publicados tardiamente (em 1947 e 1950, respectivamente). A seguir, Poésies I (1938), Poésies II (1948), Poésies III (1949) e Si tu rencontres un ramier, reunidos, mais tarde, em um só volume, Les Poésies.

Sua obra dramática, editada em sua totalidade pela Gallimard, é constituída de seis peças: Monsieur Bob'le, publicada em 1951; La Soirée des Proverbes, em 1954; Histoire de Vasco, em 1956; Les Violettes, em 1960; Le Voyage, em 1961, e L'Emigré de Brisbane, em 1965. É autor, ainda, de uma pantomima, L'Habit fait le Prince, publicada em 1973 e, mais recentemente, escreveu um livro de poesias Le Nageur d'un Seul Amour, editado em 1985 e que lhe valeu, na França, o "Premier Grand Prix de la Francophonie", em 1987.

Fundamentalmente poeta, foi sua obra dramática, no entanto, que o consagrou dentro e fora de seu país de origem.

Suas peças mereceram a direção de grandes nomes do Teatro Francês, como Georges Vitaly e Jean-Louis Barrault, tendo sido encenadas em vários teatros europeus. Chegou à Comédie Française com sua última peça, L'Emigré de Brisbane, em 1967.

Situado ora no "Teatro de Vanguarda", ora no "Teatro do Absurdo", por vezes no "Teatro do Inefável", outras vezes considerado surrealista, o fato é que Schehadé figura na dramaturgia francesa como um dos elementos que revolucionaram o Teatro do pós-guerra, mais precisamente a partir dos anos cinqüenta, ao lado de Ionesco, Adamov e Beckett (para citar os mais conhecidos entre nós), dando origem ao chamado "Teatro Novo". Porém, a não ser pela concepção amplamente inovadora da obra dramática, fato comum a todos eles, estes autores diferem, cada qual, pela maneira como se opõem ao Teatro anterior.

Valorizando o discurso poético, a peça de Schehadé tende a ser poema, através da incansável busca do novo, do original na linguagem, o que implica associações verbais surpreendentes. É este, o chamado "Teatro de Vanguarda Poético", como o denomina Esslin, ou simplesmente "Teatro Poético", como querem Geneviève Serreau(5) ou Michel Corvin.

A obra dramática de Schehadé inscreve-se, de imediato, nesta modalidade, na medida em que suas peças não são mais que prolongamentos ou ampliações de seus poemas. É como se o autor encontrasse no teatro o espaço propício para o exercício de um realismo poético. Este "Teatro de Poesia" (no dizer do próprio Schehadé) desponta como matéria instigante para o questionamento sobre os limites, a prevalência do teatro sobre a literatura (e vice-versa), com relação à obra dramática.

Mais que em qualquer outra circunstância, todavia, o texto, quando essencialmente poético, sobrepõe-se ao conjunto de elementos que fundam a obra teatral e, nesse sentido, a filia ao "Teatro de Escritores" na acepção de Gaëtan Picon, em oposição ao que chama "Teatro-Teatro"(6).

 

Presença do Oriente no Teatro de Georges Schehadé


Identificar os planos pelos quais transita a imaginação criadora de Schehadé é de fundamental importância, na medida em que, a partir deles, se pode caracterizar o percurso poético do autor, distinguindo-lhe as linhas de força.

A imaginação do autor parece exercer-se de modo pleno no âmbito de dois mundos muito próximos, mas, ao mesmo tempo, infinitamente distantes. E o realismo de Schehadé ganha sentido a partir da incessante tentativa de aproximação desses mundos – o essencial e o vivencial –, pela intermediação da poesia. É essa dialética que propicia a acentuada presença da temática oriental no universo schehadeano. Neste estudo, destacaremos aspectos em torno do tema viagem, por sua vez contraponto do sonho.

Antes de mais nada, o sonho(7).

Quanto mais não seja pela facilidade que permite à transfiguração poética, deve-se considerar o aspecto basilar do sonho na concepção oriental de mundo. Em Les Poésies, rêve e songe já se caracterizam como palavras-chave de sua poesia.

Ao longo de todas as peças, songe e rêve são sistematicamente retomadas, culminando com a afirmação que faz, de modo reiterativo, uma voz em La Soirée des Proverbes: "La vie est un songe".

Pierre Robin acentua o papel do sonho como mediador entre o escape do mundo real, concreto, e a conseqüente aproximação do verdadeiro real: "O sonho é, em poucas palavras, sinal de alerta, despertar, desprendimento do sono de nossa existência larvar; escape, talvez, ou, ao menos, esperança de um escape para a 'verdadeira vida'"(8).

O sonho, este estado de liberdade ao qual se alça a imaginação, facilitando o diálogo entre a alma e o universo, projeta-se de múltiplas maneiras no teatro de Schehadé (assumindo ora o caráter de profecia, ora de delírio...) a partir de núcleos temáticos que são freqüentemente retomados, como: sommeil, nuit, silence, aos quais se juntam, particularmente, corbeau e noir.

Nesta seqüência de categorias poéticas que organizam o sonho, sommeil desponta como a mais pura e a mais fecunda.

Na verdade, o sono, livre de toda coerção, quer espacial, quer temporal (pois o tempo e o espaço são abolidos: passado, presente e futuro se sobrepõem), promove espontaneamente o surgimento do sonho.

"O sono não é somente um sossego e, para nosso corpo, um alimento; é a perfeição da vida, porque está cheio de sonhos... e sem idade!..."(9)

O sonho é o lugar do encontro afetivo, da amizade ("Um amigo está sempre bem situado no sonho de seus amigos"(10), incentiva a aproximação amorosa, como no caso de Corée e Michel (11) etc.

As peças de Schehadé, nascidas de múltiplo processo de transfiguração poética, por si mesmas já nos comunicam a sensação de "sonho desperto" que encontra, talvez, sua expressão mais exacerbada em Le Voyage, onde Christopher, pela força do desejo de viajar por mar...:

"Quando se deseja imensamente alguma coisa, quando se estende sempre as mãos, ela acaba por descer para você na terra. Ela vem nos encontrar." (p. 76).

...vê-se projetado na vida do cabo de marinheiros Alexandre Wittiker, guindando a alma à Plenitude, pela perfeita correspondência de sua aspiração com o sonho.

Além da relação que se pode estabelecer entre sonho e viagem, é possível distinguir, ao longo de toda a obra de Schehadé, a temática da viagem; temática que estabelece, de modo frisante, a antinomia próximo/longínquo ou cósmico, um dos pilares de sua tessitura dramática.

Assim, em Monsieur Bob'le, o personagem central delineia-se a partir de um jogo sutil de ausência e presença, tendo como fato concreto a viagem que faz o Sr. Bob'le a uma ilha "por questão de dinheiro" e da qual será "diretor".

No primeiro ato, têm lugar a partida e o vazio que se instala no âmago de quem parte e no daqueles que ficam no povoado: é a presença voltada para a ausência.

O segundo ato consubstancia a ausência do Sr. Bob'le e revela os sonhos que ela suscita. Mesmo distante, o Sr. Bob'le vivifica os habitantes de Paola Scala, através de sua lembrança e de seu pensamento: é a ausência voltada para a presença.

No terceiro e último ato, ocorre a viagem do Sr. Bob'le ao paraíso perdido, através da morte, forma acabada de ausência.

Com efeito, no caminho de volta, a morte o surpreende no hospital de um porto desconhecido: presença voltada para ausência. Entretanto, as sombras, digamos assim, de todos aqueles que amou em Paola Scala, vêm visitá-lo em sonho, enquanto agoniza: ausência voltada para a presença.

Em todas as peças de Schehadé, há alguém que parte ou chega de viagem; alguém que deseja ardentemente partir, atestando a imperiosa necessidade de amainar a tensão do ser humano em sua condição de exilado neste mundo existencial.

A exemplo do Sr. Bob'le (Monsieur Bob'le), Argengeorge (La Soirée des Proverbes) viaja à colina dos "Quatro Diamantes". Vasco (Historie de Vasco) empreende o caminho dos campos de batalha. O professor Kufman "viaja" através da Ciência, da qual se desvia para outra viagem com Pierrette (Les Violettes). O Sr. Galard acaba de chegar de Brisbane, quando falece em Belvento (L'Emigré de Brisbane) e Christopher viajou longamente, através do sonho e da esperança (Le Voyage).

O "mar", núcleo poético de viagem, surge também como o grande portal que dá acesso ao mundo aspirado.

Está presente, muitas vezes, através de vague ("Ils ont dit qu'ils voulaient voir les vagues de la mer (...) C'est au sujet de votre départ, je crois"(12)); barque, sempre associada a fantasia religiosa ("Dans une clairière, des hommes se mordent les bras par religion avant de mettre leur barque à l'eau, à la recherche des poissons millénaires..."(13)), como nacelle ("Nous sommes dans la nacelle de l'Esprit... Suspendus au plus long voyage"...(14)), e ainda vapeur, bateau, navire (que povoam praticamente, toda a peça Le Voyage); através, enfim, de tudo o que lhe confere um contorno, um limite, como port, quais e presqu'île, figuras bastante freqüentes em Le Voyage.

O mar é o elemento original onde, a exemplo da linguagem, tudo se informa:

"Em pleno mar, senhor, não é como na rua; as palavras têm um sentido privilegiado!... Os oficiais tomaram parte nestas festas de linguagem e meu barco tornou-se uma espécie de confraria de Deus e do diabo, um Clube!"(15)

Sélim Abou vê na valorização poética do mar, uma manifestação permanente do escritor libanês: "O casamento do poema com o mar é coisa espontânea no poeta libanês, ele próprio nascido junto ao mar (...). O mar, onde 'as palavras têm um sentido privilegiado' afirma o poder absoluto da linguagem poética. E o movimento da onda é também o da linguagem que sai de si mesma, torna-se outra e qualquer coisa para engendrar figuras essenciais: depois, retira-se e recolhe-se antes de renascer outra vez"(16).

Le Voyage é uma peça consagrada à viagem e dedicada totalmente ao mar. Mais que em qualquer outra, vê-se matizada a busca da liberdade, a vontade férrea de romper com as amarras do quotidiano, o desejo imenso de recuperação do espaço perdido, através da imensidão do oceano.

Lugar de infinita pureza espacial, o mar é também o âmbito do inescapável, porque circunscrito, "prisão" ("nous sommes de nouveau devant la cage de la mer"(17)) a que não faltam "grades", o que atesta a amargura do ser diante de sua condição:

"O céu e o mar estão cheios de grades. Ninguém os atravessa"(18).

Outra constante da poética schehadeana, presente na temática que ora abordamos, é o céu, elemento abarcado pelo mar: ao espelhar-se nele, forma uma entidade cósmica única, ganhando as mesmas conotações poéticas: a de infinitude e a de exigüidade.

Na paisagem schehadeana que circunda a "viagem", há, sempre, a presença de pássaros que animam a vida vegetal, a natureza palpável.

Colombes equivalem, no universo diurno, ao que são corbeaux no universo das trevas e, dentro de uma perspectiva alusiva, enquanto, como vimos, corbeau se pode associar a mau agouro, colombe encerra e irradia pureza; pureza que, entretanto, não é necessária ao mar, pois ele já a contém:

"O grão atirado às águas não germina, pois não há o que apodrecer... E se a pomba não mora no mar (...) é para espalhar sua pureza pelas colinas"(19).

Georges Schehadé é sempre surpreendente pela infinita capacidade de extrair da linguagem potencialidades insuspeitadas. Imagens que nascem da associação de elementos opostos que tocam o concreto e o abstrato, o sublime e o vulgar, o real e o irreal, suscitando o insólito: esta é a linguagem adequada aos personagens schehadeanos.

Exemplo extremo dessa extração dá-se quando o autor permite a Christopher (Le Voyage) enxergar corbeaux blancs (p.117), síntese miraculosa obtida no nível do sonho poético.

Mergulhar na obra de Schehadé é viver o processo de evasão do mundo imediato; é distanciar-se das contingências deste real em direção do realismo poético, instância que o dramaturgo-poeta persegue – como bem aponta Gabriel Bounoure, um dos críticos mais penetrantes da obra schehadeana –, apoiado em sua profunda convicção de oriental, que sabe que "a vida é um sonho, onde tudo surge por meio de figuras"(20). Esta profunda convicção do Oriente, prossegue o crítico, é a filosofia do teatro de Schehadé.


1. In: "Schehadé e o Líbano". Artigo publicado no Suplemento Literário de O Estado de S.Paulo, em 29.12.1956.

2."Suas fontes estão praticamente em seu interior. Sim, meu caro Georges, você é bem capaz de não ter lido as Mil e Uma Noites. Não havia necessidade. Você as trazia consigo, junto com suas estrelas pessoais e suas íntimas aeronaves, você que é tão inspirado para a invenção verbal quanto para a criação de seus personagens. E tudo isso vai-se impondo a nós, naturalmente, sem que nos demos conta, como o curso de um rio da França ou o crescente da lua mágica" (In: Georges Schehadé, Cahiers de la Compagnie Madeleine Renaud / Jean Louis Barrault, 17è. Cahier, Paris, Julliard, 1957, p.3).

3."Georges Schehadé é para mim um dos maiores, dos mais autênticos dentre os poetas de nosso tempo; e fico feliz de estar de acordo com críticos tão exigentes e tão perspicazes quanto André Breton ou Gabriel Bounoure, com poetas tais como Saint-John Perse, René Char e Supervielle" (cit. por Sélim Abou, in Le Bilinguisme Arabe-Français au Liban, Paris, PUF, 1962, p.366).

4. In: Liban, Paris, Seuil, 1969, pp. 156-157.

5. Histoire du Nouveau Théâtre, Paris, Gallimard, 1966.

6. PICON, Gaëtan. In: Panorama de la Nouvelle Littérature Française, Paris, Gallimard, 1960, pp.295-296.

7. Para um tratamento mais amplo do tema sonho em Georges Schehadé, veja-se "Sonho e realidade no Teatro de Georges Schehadé", Revista de Estudos Árabes, No. 3.

8. L'Insolite et le Rêve dans le Théâtre de Georges Schehadé, in: L'Onirisme et l'Insolite dans le Théâtre Français Contemporain. Paris, Klincksieck, 1947, p.105.

9. Monsieur Bob'le, Paris, Gallimard, 1951, p.32.

10. Idem, Ibid., p.127.

11. Idem, Ibid., p.127.

12. Idem, Ibid., pp.12-13.

13. Idem, Ibid., p. 144.

14. La Soirée des Proverbes, p. 124.

15. Monsieur Bob'le, p.208.

16. Le Bilinguisme Arabe-Français au Liban, Paris, PUF, 1962, pp.450-451.

17. La Soirée des Proverbes, p.147.

18. Idem, Ibid., p.213.

19. La Soirée des Proverbes, pp.147-148.

20. Monsieur Bob'le et les Ombres, in Marelles sur le Parvis, Paris, Plon, s/d., p.299.