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Entrevista
Literatura Árabe e Literaturas Árabes

 

Ana Ramos Calvo
(Madrid, 15-4-98. Entrevista: Jean Lauand.
Edição e Tradução: Aida Hanania.)


JL:
No âmbito da Literatura, que campos tem privilegiado em suas pesquisas? Que temas a ocupam atualmente?

AR: Dedico-me, atualmente, à Literatura Contemporânea, mas não descuidei da Literatura Clássica: aliás, penso, que uma não pode ser estudada sem a outra. Meus trabalhos têm se desenvolvido nessas duas direções: Literatura Clássica e Literatura Contemporânea. Poderia dizer, talvez, que o que mais me interessa na Literatura é seu conteúdo; trabalho com uma, digamos, Sociologia da Literatura e isto, tanto em relação à época clássica como à atualidade.

Da época clássica, talvez meu trabalho mais conhecido seja uma tradução e um estudo de um livro de viagens - deve ter sido um best-seller em sua época - que é a Tuhfat Al-Albab (El regalo de los espiritus) de Abu Hamid Al-Garnati, (1a. ed. C.S.I.C. Madrid, 1990) apesar de que, no mundo ocidental, o livro de viagens mais conhecido seja o de Ibn Battuta... Talvez al-Garnati não seja tão conhecido, porque nunca tinha sido traduzido nem ao espanhol, nem a outra língua européia, embora houvessem anunciado sua publicação na revista francesa Ferrand; mas não chegou a aparecer esta tradução. Então eu a fiz com um pequeno estudo do autor e de sua obra: um trabalho muito agradável, porque se trata de um viajante do século XII que percorreu o mundo todo e sempre com uma visão muito pessoal: atravessa os mares e encontra-se com monstros terríveis (como, talvez, um polvo, que para a época, seria um animal terrível...) e nos descreve tudo com muita viveza. E como se fosse um turista visita as pirâmides e, também como turista, tira as bandagens de uma múmia (os "turistas" daquela época faziam vandalismos e estragos como os atuais...)

Há também descrições de monumentos interessantíssimos - visitados por ele - que desapareceram (como o farol de Alexandria!) e faz também uma descrição (a de Al-Garnati é a primeira menção escrita) da ave Rukh, que deu margem a tantas fantasias... É uma obra fabulosa, tem contribuições extremamente interessantes de caráter sociológico e etnológico dos povos que foi visitando, sobretudo dos arredores do Cáucaso. Além disso, há muitas lendas, há tumbas etc. A mim, me pareceu apaixonante e por isso o traduzi.

Isto, quanto à literatura clássica: essa é a obra que mais aprecio. Quanto à Literatura Contemporânea, também tenho minhas preferências.... Por exemplo, traduzi há muito tempo, nos anos 70, um pequeno romance, de Bashir Khoayyef, um tunisino falecido recentemente, que se intitula Barq el Lil. É um fragmento de uma grande obra que o autor projetava escrever e ficou somente em um episódio. Tem um conteúdo de caráter sociológico, folclórico, histórico muito interessante e além do mais é muito agradável de se ler: uma historieta de amor muito curiosa. A obra me parece interessantíssima e teve boa aceitação. Publiquei também outras traduções, acompanhadas de estudos introdutórios.

Realizei outros trabalhos, mais de pesquisa, de determinados temas, nas literaturas de diversos países árabes. Neste momento, estou mais centrada na Síria. Estou preparando um livro sobre um interessantíssimo autor sírio que, na Espanha, praticamente não se conhece (só estava traduzido um conto em um livro que já está esgotado). Chama-se 'Abd el-Salam al-Ujayli. É um autor que tem mais de quarenta livros publicados. É um médico, de um pequeno povoado da Síria, foi também ministro da educação, da cultura e de assuntos exteriores de seu país e continua a exercer a medicina. Viajou por todo o mundo e há várias linhas de interesse em sua obra, mas, fundamentalmente, é nos livros de viagens que se entronca com a linha clássica. Daí meu interesse por ele, além de seu inegável mérito literário. Ele tem uma maneira muito original de escrever um livro de viagens: tudo são histórias, são contos, são relatos e com enredos e desfechos apaixonantes. Ainda que seja um conto de três páginas, sempre há muita ação: é um autêntico romance em embrião! 'Abd el-Salam al-Ujayli cultiva principalmente o conto, entre outras razões - como ele mesmo diz - porque não tem tempo - em sua vida agitada - para romances. É um autor que todos podem ler, que está ao alcance de todos. Parece-me que é parte integrante do trabalho do arabista dar a conhecer essa literatura desconhecida....

Sobre este autor, pretendo publicar no futuro algo sobre sua viagem ao Brasil, que tem um interesse extraordinário.

JL: Como vê a literatura árabe clássica em relação à literatura árabe, ou às literaturas árabes contemporâneas... Que características se destacam?

AR: No caso clássico, evidentemente, pode-se falar de literatura árabe, porque é universal. Na literatura contemporânea, sobretudo nos aspectos a que me dedico, que são aspectos de conteúdo, creio que temos que falar em literatura específica de cada um dos vários países: tenho notado, por exemplo, enormes diferenças entre a literatura síria (à qual mais me dedico) e a tunisina, que também conheço muito bem.

Há grandes diferenças entre elas, inclusive de linguagem, ainda que, evidentemente, estejam escritas no mesmo árabe clássico. A grande polêmica atual é a introdução da linguagem vulgar, ou melhor dito, da linguagem materna em cada literatura (nas obras que estão escritas, naturalmente, em árabe clássico) e já se vai aceitando que alguns diálogos estejam em árabe vernáculo de cada país. Isto traz problemas aos tradutores, porque, evidentemente, é dificílimo detectar o que querem dizer. Tenho encontrado alguns casos verdadeiramente tremendos.

JL: Há algum exemplo que possa ser interessante?

AR: Sim, posso dar um exemplo muito interessante de que estou me recordando agora, desta novela Barq el Lil. Havia uma frase que estava me deixando totalmente desesperada: não conseguia ver as raízes das palavras... Consultava meus colegas árabes (orientais) e eles também não sabiam como me ajudar e diziam: "Isto está escrito por um tunisino e os tunisinos não sabem escrever árabe". E o mais curioso é que nem os colegas tunisinos a entendiam... Eu já não agüentava mais. Então, para traduzir esta obra, viajei para Túnis, onde fiquei por um mês e meio: porque a verdadeira protagonista da obra é a medina, a antiga medina. E então eu a percorri em cada um dos bairros, cada um com suas peculiaridades para captar bem a essência da novela, mas aquela frase não havia quem decifrasse. E, voltando a revê-la, vi uma frase na página anterior, em árabe clássico, que é uma citação alcorânica e, finalmente reparei que a tal frase dizia o mesmo, mas mal pronunciada. Pois a frase estava na boca de um personagem sudanês, um negrinho sudanês...

No Sudão, há uma confusão entre os sons de jym e de zay e, evidentemente, era isto que ocorria. Mas depois, havia outro som que eu ignorava que fosse objeto de confusão (os livros que eu consultava de transformações em árabe coloquial, não o registravam): o ha enfático, pronunciado muito menos forte: ha. Este é um fato característico dos negros sudaneses, quer dizer, o protagonista falava como o negrinho que era e, além disso, com deformações sudanesas, e aí não havia jeito de decifrar, mas graças a Deus resolvi o problema e foi é um dos meus melhores achados: fiquei contentíssima. Mas, claro, estes problemas ocorrem freqüentemente nas traduções...

Retomando o fio de nossa conversa, é evidente que há literaturas locais: porque os problemas de cada lugar são muito diferentes. Vamos tomar um exemplo universal, o caso palestino. O palestino não tem a mesma linguagem de um marroquino ou de um libanês e é preciso entender estas claves para ler estes livros. E também para tomar um exemplo concreto que se converteu em símbolo universal no mundo árabe: quando se fala de al-Andalus, fala-se da Palestina... Quer dizer, é uma espécie de simbologia que se encontra em todos os países árabes, mas tenha em conta que é muito diferente deparar-se com ele na Síria do que no Marrocos: é completamente diferente. Eu fiz um pequeno trabalho sobre o tema palestino na literatura síria e creio que aí se vêem os matizes de emoção, também panfletários, evidentemente, mas que são diferentes de qualquer outro país árabe.

E, quanto a aspectos como esse, parece-me que se deva falar em literaturas... Por tudo: por estética, por exemplo: está-se falando e está-se procurando uma nova literatura genuinamente árabe, mas ser genuinamente sírio é tão diferente de ser genuinamente marroquino: por suas influências. Evidentemente as potências colonizadoras deixaram sua marca e depois há a arabização. Em alguns países árabes, perdeu-se muito da tradição árabe, porque foram muito influenciados pela língua francesa; no Marrocos do Sul, pela espanhola (se bem que em menor grau)... Na Síria, não se perdeu nada do árabe: desde os anos 20, já as Universidades sírias ensinavam em árabe... Quer dizer que a dimensão árabe é muito diferente. No entanto, na Síria, por exemplo, a literatura é a mais nacionalista, a mais engajada politicamente. No entanto, é a que menos reparos tem para adotar formas européias, os aspectos formais do europeu. Não se importam, adaptam-nos muito bem, adaptam-nos a seu conteúdo: quer dizer, é a mais árabe e a menos árabe ao mesmo tempo... Quanto ao conteúdo, é a mais árabe de todas...

JL: Fazem sucesso na Espanha as obras da Literatura Árabe?

AR: Penso que os arabistas temos talvez a culpa de não traduzir as obras que devíamos ter traduzido. Acontece, muitas vezes, que nos atemos às obras que interessam do nosso ponto de vista, em que encontramos valores em obras que o grande público não pode apreciar. Para efeitos de divulgação, teríamos que encontrar obras mais adequadas. Digamos que é o que pretendi com estas duas pequenas obras, tanto a clássica, como esta, histórica, a Barq el Lil tunisina. Pretendi que agradassem ao público e, de fato, estão esgotadas as edições: fato tanto mais significativo, quando se tem em conta que as editoras não são comerciais, mas científicas: uma no Consejo, a clássica e a outra no Instituto de Cooperación con el Mundo Árabe. E o fato de terem se esgotado tem seu mérito, porque não são editoras com tanta difusão fora do meio acadêmico.

O que estou fazendo agora é o mesmo: são doze contos interessantíssimos, alguns de viagem, outros de "episódios" de médicos, episódios que todos os médicos contam das consultas; outros, falando sobre paisagens que nos podem parecer exóticas, como são as do deserto, os costumes do deserto, coisas que aqui podem interessar muito, mas sempre com uma descrição agradável, inserida num conto com enredo instigante.

Quer dizer, não somente a descrição do ambiente: "Estava em Paris e vi isto e aquilo" não! Em Paris, este autor se encontrou com uma índia americana e lhe contou sua história e, em Milão cai num conto do vigário, porque os turistas, quando vão à Itália, têm que ter bastante cuidado com os vigaristas. Enfim, conta histórias dentro de um "marco" e, ao mesmo tempo, expressa seus pensamentos...

JL: Os árabes continuam sendo grandes contadores de histórias...

AR: Sim. Al-Ujayli é um exemplo. É um magnífico narrador. Um magnífico narrador dentro de certos "marcos", quer dizer, sua literatura de viagens não é uma literatura de viagens pesada, que vai contando tudo o que viu. Conta-a como que de passagem: "tal pessoa se encontrou em tal café de tal rua de Paris e aí narra que está em tal rua do bairro latino...". Este mesmo autor, quando vê a Espanha, a vê muito diferente do que um autor marroquino. Para um sírio, na Espanha, todos são descendentes dos omíadas, que eram sírios... E assim, encontra muitas semelhanças com a Espanha, a Espanha moderna. Encontra-se identificado; quando conhece o idioma e a Espanha, com os vestígios do passado árabe, quer dizer, os monumentos de Sevilha, de Granada, de Córdoba, voltam a seu próprio passado...

JL: Voltar para casa...

AR: Isto mesmo, e encontram-se ali traços comuns, até nas moradias: "Mas isto é igual ao que temos na Síria... ". E quando nosso autor vai a Córdoba, querem lhe mostrar o túmulo do toureiro Manolete..., mas ele diz que prefere ir à Mesquita e conta suas impressões sobre a Mesquita... E quando está em Madrid e visita o Museu de Arte Moderna, onde está o Guernica de Picasso e diz que o quadro não lhe agrada, por exemplo, e o diz com toda a tranqüilidade, quer dizer, expressa suas opiniões..., a mim me parece que é isto que pode interessar talvez ao público espanhol, creio que sim, pode agradá-lo.

Grandes contadores de histórias... Evidentemente, traduziu-se Nagib Mahfuz e eu também traduzi o rei do prêmio Nobel. Eu traduzi uma parte — porque o fizemos em equipe — de Filhos de nosso bairro, uma das obras mais emblemáticas, porque esteve proibida durante um tempo e é um livro de muita profundidade. É um livro muito profundo que agradou, porque está envolto por aquela graça popular egípcia porque, claro, Nagib Mahfuz é um grande narrador. Mas, há outras obras de Mahfuz que não interessam ao grande público, refiro-me ao grande público espanhol e por isso, muitos podem dizer: não gosto da literatura árabe. Creio que temos que tentar ver o que pode agradar ao público espanhol.

JL: E, ao contrário, haverá algum interesse nos países árabes, pela literatura do Ocidente, particularmente pela literatura espanhola contemporânea?

AR: Há um grande interesse. O que acontece é que os interesses estão muito dirigidos...

LJ: Você mesma publicou um "Dom Quixote" sírio...

AR: Dom Quixote (traduzi um pequeno conto de Hani Al-Rahib-Dun Kishut, publicado em Collatio 1) é tomado mais como símbolo universal de que como símbolo da literatura espanhola, como símbolo universal do visionário que luta por alguns ideais contra o impossível. O que acontece é o que eu já comentava na introdução àquele conto: que o escritor sírio que tem uma ideologia muito determinada, também transporta sua ideologia a este símbolo e encontramos um Dom Quixote, líder de massas... Não podemos, sobretudo os espanhóis, imaginar um Dom Quixote líder de massas...

Evidentemente, desperta interesse a literatura espanhola. Mas sobretudo, há um autor que não há ninguém no mundo árabe que não o conheça, é Garcia Lorca. Garcia Lorca é muito conhecido, muitas teses foram feitas sobre ele. Estou me lembrando agora de uma, que pode ser emblemática, uma tese a que assisti, aliás uma tese muito boa, que se dedicava a corrigir, a criticar, a comentar as traduções para o árabe que se fizeram de Garcia Lorca, que são muitíssimas, infinitas... Mas, evidentemente, é muito difícil traduzir Lorca; é muito difícil traduzir por exemplo: "Verde que te quiero verde" ao árabe de modo que se entenda; é muito difícil traduzir "La zapatera prodigiosa"... E é muito difícil entender certos símbolos e por isso foram mal traduzidos. Esta tese estava dedicada tematicamente a encontrar estas falhas nas traduções de Lorca, algumas verdadeiramente terríveis... Outras acham-se perfeitamente identificadas. Tenho má memória e não me recordo do nome de um filme marroquino maravilhoso sobre Bodas de Sangre, transportada a um ambiente tipicamente árabe popular e estava perfeitamente tomado o símbolo e toda a essência de Bodas de Sangre: era uma situação verdadeiramente muito semelhante; isto sim, pode acontecer.

Há muitos outros autores, muitos dramaturgos que foram traduzidos para a literatura árabe. Sim, interessa a literatura espanhola. Temos muitos autores contemporâneos interessados na literatura árabe e, ao mesmo tempo, árabes interessados neles; um deles pode ser Goytisolo, naturalmente. Goytisolo é muito conhecido no mundo árabe, ainda que não seja mais que pelo interesse que ele tem pelo mundo árabe e como o plasma em sua literatura. Eu também fiz um pequeno trabalho sobre a presença do árabe na literatura européia, em um congresso. Na realidade, foi uma comunicação em um congresso que se realizou em Estrasburgo, que girava em torno da presença árabe na literatura européia. A maioria dos participantes se concentraram na literatura medieval e para quem, então, acabava de aparecer o Manuscrito Carmesí, o romance de Antonio Gala, que fala naturalmente de Boabdil, do rei mouro de Granada. E aí se coloca outro problema fundamental: há, uma maurofilia, há uma exaltação do árabe exagerada, quando na realidade espanhola atual, temos também uma maurofobia tremenda, por causa da triste figura do imigrante pobre, do imigrante que vem fazer os trabalhos menos agradáveis, mais duros. Este contraste entre a maurofilia e a maurofobia tem que ser assinalado na literatura espanhola contemporânea que é paralela à maurofobia e a maurofilia que houve na literatura árabe do século de ouro do renascimento espanhol.

JL: Suas considerações finais sobre sua tarefa como docente.

AR: Vou comentar um pouco sobre o ensino do árabe na Universidade Autónoma. Eu leciono literatura e língua. Atualmente, estou encarregada de uma disciplina muito bonita que é Textos Árabes IV. É uma mistura de teoria e prática de tradução através dos textos árabes. Quando realizam o curso que corresponde a minhas expectativas como aconteceu neste ano, com o curso no semestre passado, fico feliz pois comentamos mais de seis ou sete obras tanto clássicas como contemporâneas e os alunos tiveram um grande interesse e penetraram na Literatura Árabe; outras turmas não penetram na Literatura Árabe... Isto me agrada muito.

Também ensino Literatura Clássica, há que introduzir os alunos do segundo ano em um mundo novo, o que é também um desafio... Gosto muitíssimo de dar aulas...

Tenho também um outro curso que se dirige a hispanistas (alunos de Letras Hispânicas) e também de Francês. Ensino-lhes árabe; língua, naturalmente, e também cultura e literatura, mas de maneira muito geral, não nos detendo em minudências que não lhes vão servir para nada... Isto me agrada muito: abrir um mundo novo a pessoas que não acreditavam que fosse assim... Este mundo me parece que traz algumas claves que lhes pode servir no desenrolar de suas profissões. Evidentemente, a universidade espanhola não ensina nada do que queríamos ensinar, nem como queríamos ensinar. Veja os alunos recém-ingressados; somente lhes mostram um pouco de literatura, de cultura, de língua... Eu procuro, além disto, mostrar audiovisuais, para que vejam que é uma língua viva, realmente falada. Não me centro somente nisso, pois não se trata aqui de uma escola de idiomas, mas de uma Universidade; porém quero que saibam que o árabe é uma língua viva, que não pensem que o árabe é algo do passado e há alunos muito interessados. É um curso muito descontraído, as notas importam pouco em um curso assim ao qual ninguém vai dedicar-se profissionalmente...