JL: Quais são os temas de que tem se
ocupado em suas pesquisas?
PM: Minha trajetória como arabista é
talvez bastante atípica e muito diferente do arabismo espanhol
mais conhecido. Eu comecei, dedicando-me à história medieval
e minha tese de doutoramento, aproveitando uma estadia no Egito,
versou sobre um tema do qual agora estou absolutamente afastado:
"A oscilação do preço do trigo no Cairo durante o regime
mameluco".
Mas, muito cedo, interessei-me pelo mundo atual,
ao qual, principalmente, tenho me dedicado. Sempre me interessei
também pelas relações hispano-árabes - em sentido amplo e não
somente cultural - e também o estudo do que poderíamos chamar
"os olhares cruzados" entre o mundo árabe e o mundo
hispânico.
No conjunto, meu trabalho de pesquisa está
centrado no mundo contemporâneo: num primeiro momento, voltando-me
especialmente para aspectos da literatura e do pensamento e,
desde há alguns anos, interessa-me - tanto quanto a literatura
ou o pensamento - fazer uma interpretação, uma análise - o mais
global possível - do mundo árabe contemporâneo, tendo em conta
os principais desafios que esse mundo tem que enfrentar.
Em 1992, publiquei um livro intitulado "Al-Andalus
na literatura árabe contemporânea". Eu não estou
totalmente satisfeito com esse livro; a verdade é que fiquei
só medianamente contente. É um livro que recolhe um trabalho
de pesquisa de pelo menos vinte e cinco ou trinta anos de estudos
sobre o tema; um tema ao qual dediquei boa parte de minha vida,
boa parte de minha inquietação intelectual (e também de minha
inquietação pessoal). Este é um pouco o resumo de minhas pesquisas:
tentar captar quais são as claves do relacionamento que se estabelece
entre o andalusi - o hispânico em geral - e o árabe.
Em 1995, publiquei um livro intitulado Pensando
a história dos árabes. É um livro muito extenso, com cerca
de oitocentas páginas em formato grande e que é, basicamente,
uma compilação dos trabalhos de caráter histórico que eu tinha
publicado. O livro nasceu por uma razão muito concreta: os acontecimentos
da Segunda Guerra do Golfo. Para mim, significou uma comoção
em meus postulados; não só científicos, mas vitais. Penso que
foi o penúltimo - o último está por vir ainda: veremos como
será... - grande acontecimento que ocorreu neste espaço que
chamamos mundo árabe-islâmico. Neste livro, recolho grande parte
do que comecei a repensar, a reelaborar e a reinterpretar, a
partir de uma perspectiva, como dizia, de profunda inquietação,
de profunda preocupação, especialmente a partir daquela data.
É um livro um pouco caótico, "menos ordenado" do que
poderia ser, oscila entre a pesquisa científica e a elucubração
(no melhor sentido da palavra) intelectual e principalmente,
tem o objetivo, como dizia, de "mexer" com os espíritos,
pois lida com a sensibilidade e com as inquietações. É, fundamentalmente,
um livro de preocupação, de profunda preocupação intelectual,
pessoal e científica.
E o último livro, publicado no ano passado
em Madrid, tem por título O desafio do Islão (El reto
del Islam), mas eu me identifico muito mais com o subtítulo
(na verdade, o título se deve ao interesse da editora em que
aparecesse a palavra "Islão", que é, hoje, por assim
dizer, um "gancho"): "La larga crisis del
mundo árabe contemporâneo" ("A longa crise do
mundo árabe contemporâneo") e é este, precisamente, o tema
da obra. A editora é muito conhecida, a difusão foi relativamente
boa: estou muito satisfeito. É um livro sobre o que poderíamos
chamar ciência-consciência e parece-me que expressa bem qual
é meu propósito nestes anos de estudo desse mundo; propósito
que não se cifra somente no fato científico (que não diz muito
ao homem de nossa época), mas busca aplicar alguns postulados
com critérios - sem pretensão - neo-humanistas.
E atualmente, estou preparando um livro - que
tenho consciência de que demorarei ainda uns três ou quatro
anos até terminá-lo - que versa, em parte, sobre um tema "da
moda" - os temas desaparecem e reaparecem em função dos
interesses (mais ou menos lícitos ou espúrios) que existem por
aí e que influem na ciência (ou no que se considera ciência...)
- e que terá por título "El mediterráneo y los árabes".
O mediterrâneo virou moda; os ocidentais, de vez em quando,
"redescobrem" as coisas que querem descobrir, voltam
a ser moda por razões de interesse econômico e político. E tudo
isto desvirtua, em boa medida, a autêntica dimensão dos temas
e dos problemas: penso que o tema do mediterrâneo está sendo
novamente introduzido com umas fórmulas de estudo em boa medida
viciadas e adulteradas e pretendo oferecer uma outra visão e
um tratamento a partir da perspectiva da ciência-consciência.
JL: Quais são os principais traços da
imagem da Espanha feita pelos árabes?
PM: Evidentemente, o ponto de partida
é Al-Andalus. Os árabes, quando olham para Espanha, não
podem esquecer - e é totalmente lógico, totalmente compreensível
- e vêem basicamente aquele mundo que compartilharam conosco.
Eu, pessoalmente, também interpreto Al-Andalus como um
mundo compartilhado entre eles e nós. E como um objeto de reflexão
comum. Então eles partem fundamentalmente desse sistema de vocação;
a vocação se projeta em todos os aspectos e, inevitavelmente,
isto tem que produzir uma imagem que procura - sem conseguir
- conciliar o que foi a glória de outrora com o que é a miséria
de agora. Além de ter sido realmente uma das páginas mais gloriosas
de toda a história dos árabes e da história hispano-árabe (compartilhada,
como dizia...), Al-Andalus foi alçado à categoria de
mito - como vocês sabem muito bem, porque a mitificação de Al-Andalus
entre os poetas do majhar, principalmente os brasileiros,
foi importante - e essa dimensão simbólica sempre tem estado
presente: é uma espécie de refúgio, é uma espécie de lembrança
de que fomos grandes e de que agora somos miseráveis e estamos
decaídos...
Esta, possivelmente, é a imagem central. Também
é verdade que junto a esta imagem central, vertebradora, foi
se produzindo, ao longo dos anos, com muitas dificuldades, com
menos possibilidades de aceitação genérica pelos árabes, a descoberta
do que podemos chamar de "a Espanha atual". Esta nova
tendência começou muito timidamente na primeira década deste
século e foi progressivamente crescendo e, nas últimas décadas,
há não poucos ensaístas - mais ensaístas e prosistas do que
poetas... -, alguns autores teatrais; mas, fundamentalmente
ensaístas e historiadores que procuraram aproximar-se da Espanha.
Mas, de qualquer modo, o peso de Al-Andalus continua
sendo muito mais importante.
JL: A Espanha ocupa um lugar excepcional
de proximidade aos árabes, num Ocidente que lhes é, em geral,
tão hostil?
PM: A verdade é que o tema das relações
hispano-árabes é "teórico", un tópico, quer
dizer, há muito tempo que estamos no plano da retórica: ficamos
falando do que teoricamente nos une e deixamos de lado, marginalizando
o que talvez não nos uniria tanto. Recordando um verso de um
poeta iraquiano, eu diria que, tanto eles como nós: "Continuamos
lidando com o mel das palavras". Quero dizer que não estabelecemos
relações reais, ficamos mais na realidade virtual do que na
realidade autêntica. Progressivamente, esta situação vai-se
corrigindo: eu tenho a esperança de que chegará o momento em
que entre espanhóis e árabes - naturalmente, dentro dos respectivos
contextos de cada um - estabelecer-se-á um diálogo e uma relação
absolutamente real, na qual abordemos os problemas tal como
são, na qual não tenhamos reparos em dizer as coisas tal como
são, na qual nos apresentemos sem reservas. E que deixemos de
lado tantas frases bonitas, tantas retóricas e tratemos das
coisas tal como realmente são e façamos projetos comuns.
JL: O senhor falou há pouco da Guerra
do Golfo. Como vê o futuro possível dos árabes?
PM: Em um de meus últimos artigos, "Final
e princípio do século", uma das idéias fundamentais é a
de que a situação - em seus traços gerais, estruturais, claro
- do mundo árabe e especificamente do Oriente Próximo, do
mashriq (quanto ao magrib, seria necessário matizar
um pouco...), curiosamente, lembra muito a situação da mesma
região no início do século. Isto é, ocorreu uma espécie de retorno
à situação de presença colonial aguda - antigamente não dissimulada,
agora sim -, que podemos chamar de neo-colonialismo ou de re-neo-colonialismo.
No começo do século, o colonialismo se apresentava mais em um
esquema político; na atualidade, mais num esquema de penetração
econômica (evidentemente, vinculado à política...). Os árabes
estão, claramente, numa situação de fraqueza. E a partir de
uma situação de fraqueza é muito difícil - para não dizer impossível
- lutar contra uma situação de força: há um desequilíbrio nas
relações.
E é verdade também que os árabes estão num
processo de desunião, de fragmentação interna muito profunda.
Eu sempre me interessei muito pelo estudo da mentalidade e da
sensibilidade dos indivíduos e das comunidades e - este é um
outro fator importante - parece-me que os árabes podem encontrar,
com facilidade, certo campo de saída para a irrealidade. Não
me refiro a idealismos, mas a irrealismo ou a a-realismo: não
ver a realidade tal como ela é. Nesse sentido, exploram pouco
algumas possibilidades de dimensão mais racional, de dimensão
mais ponderada, de dimensão mais equilibrada - que não contradizem
o apaixonamento, quando o apaixonamento tem que se fazer presente...
O mundo árabe necessita profundamente de uma reestruturação
política e de uma reestruturação social. Como é amplamente conhecido,
há um problema fundamental que é o déficit de liberdade: tanto
no contexto coletivo, como no individual.
As soluções devem partir deles mesmos e, aproveitando
a formulação de um conhecido historiador francês, é necessário
um "combate pela liberdade". As fórmulas regeneradoras
desta já longuíssima situação de crise têm que partir dos próprios
árabes: de fora não virão e, se vierem, virão de modo interesseiro.
Com isto não quero de modo algum dizer que o mundo árabe deva
viver num isolamento: como todo o mundo, eles devem abrir-se
aos outros, mas deve estar claro que as capacidades só podem
vir de si mesmos...
JL: Neste quadro, como o senhor vê o
problema religioso, por exemplo o fundamentalismo?
PM: Eu, já há muitos anos, venho afirmando
que é absolutamente impossível desislamizar o mundo árabe. Ora,
trata-se de entender, aproveitar e inserir num processo de desenvolvimento
do mundo árabe o que o Islão tem de príncipios criativos e de
príncipios reformadores. Ou para usar as palavras mais conhecidas:
tolerância, compreensão, cooperação etc. Com isto quero dizer,
de um modo muito claro, que não acredito nas fórmulas extremistas
nem em que acabem por triunfar. Sim, acredito nas fórmulas que
poderíamos chamar de "revolução interna ponderada"
(claro, pode parecer a muitos que "revolução" e "ponderação"
sejam termos contraditórios...). Enfim, eu creio que se pode
dar uma profunda revolução estrutural interior, aproveitando
o Islão como um dos componentes....
JL: Há intelectuais no mundo árabe preocupados
com esses valores?
PM: No pensamento árabe e islâmico,
sim. E há pensadores - e até grupos... - que são muito representativos.
Porém, isto está ocorrendo num contexto mais teórico do que
no da aplicação prática. Porque há um fato muito evidente: os
mecanismos de poder no mundo árabe continuam sendo muito duros
e implacáveis. Então, se não há uma profunda transformação desses
mecanismos de poder - e isto é um fato político - e uma profunda
transformação dos mecanismos sociais - e isto é um fato social
-, a verdade é que não haverá solução para os problemas. Eu
sou moderadamente otimista: penso que praticamente em todos
os países (Egito, Síria, Marrocos, Argélia etc.) há grupos de
intelectuais ou indivíduos que - de forma mais ou menos isolada
- estão estudando os problemas e tratando de propiciar esses
movimentos de profunda transformação a que aludo. Mas, insisto:
se não há uma profunda mudança nos mecanismos de poder... Sim,
é necessário introduzir fórmulas democráticas, mas, certamente,
o processo de democratização do mundo árabe não tem porque ser
idêntico ao processo de democratização de outros mundos. Não
tem porque ser idêntico nos conteúdos nem nos processos. Nem
em termos de quantidade, nem em termos de qualidade.
É necessário que se resolvam os grandes problemas
políticos - por exemplo, que o problema palestino tenha uma
solução justa -, que não se demore muito (as pessoas se cansam
de viver sem perspectiva de futuro)... É um mundo muito complicado,
é um mundo que - já há muito tempo - está atravessando uma tremenda
situação de crise e - tendo uma visão realista, voltada para
os fatos - sou moderadamente otimista, porque continuo confiando
na lucidez, que há em muitos pensadores e escritores, como dizia.