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Entrevista
O Mundo Árabe Atual e os "Olhares Cruzados"
Pedro Martínez Montávez

(Madrid, 14-4-98. Entrevista, tradução e edição: Jean Lauand)

 

JL: Quais são os temas de que tem se ocupado em suas pesquisas?

PM: Minha trajetória como arabista é talvez bastante atípica e muito diferente do arabismo espanhol mais conhecido. Eu comecei, dedicando-me à história medieval e minha tese de doutoramento, aproveitando uma estadia no Egito, versou sobre um tema do qual agora estou absolutamente afastado: "A oscilação do preço do trigo no Cairo durante o regime mameluco".

Mas, muito cedo, interessei-me pelo mundo atual, ao qual, principalmente, tenho me dedicado. Sempre me interessei também pelas relações hispano-árabes - em sentido amplo e não somente cultural - e também o estudo do que poderíamos chamar "os olhares cruzados" entre o mundo árabe e o mundo hispânico.

No conjunto, meu trabalho de pesquisa está centrado no mundo contemporâneo: num primeiro momento, voltando-me especialmente para aspectos da literatura e do pensamento e, desde há alguns anos, interessa-me - tanto quanto a literatura ou o pensamento - fazer uma interpretação, uma análise - o mais global possível - do mundo árabe contemporâneo, tendo em conta os principais desafios que esse mundo tem que enfrentar.

Em 1992, publiquei um livro intitulado "Al-Andalus na literatura árabe contemporânea". Eu não estou totalmente satisfeito com esse livro; a verdade é que fiquei só medianamente contente. É um livro que recolhe um trabalho de pesquisa de pelo menos vinte e cinco ou trinta anos de estudos sobre o tema; um tema ao qual dediquei boa parte de minha vida, boa parte de minha inquietação intelectual (e também de minha inquietação pessoal). Este é um pouco o resumo de minhas pesquisas: tentar captar quais são as claves do relacionamento que se estabelece entre o andalusi - o hispânico em geral - e o árabe.

Em 1995, publiquei um livro intitulado Pensando a história dos árabes. É um livro muito extenso, com cerca de oitocentas páginas em formato grande e que é, basicamente, uma compilação dos trabalhos de caráter histórico que eu tinha publicado. O livro nasceu por uma razão muito concreta: os acontecimentos da Segunda Guerra do Golfo. Para mim, significou uma comoção em meus postulados; não só científicos, mas vitais. Penso que foi o penúltimo - o último está por vir ainda: veremos como será... - grande acontecimento que ocorreu neste espaço que chamamos mundo árabe-islâmico. Neste livro, recolho grande parte do que comecei a repensar, a reelaborar e a reinterpretar, a partir de uma perspectiva, como dizia, de profunda inquietação, de profunda preocupação, especialmente a partir daquela data. É um livro um pouco caótico, "menos ordenado" do que poderia ser, oscila entre a pesquisa científica e a elucubração (no melhor sentido da palavra) intelectual e principalmente, tem o objetivo, como dizia, de "mexer" com os espíritos, pois lida com a sensibilidade e com as inquietações. É, fundamentalmente, um livro de preocupação, de profunda preocupação intelectual, pessoal e científica.

E o último livro, publicado no ano passado em Madrid, tem por título O desafio do Islão (El reto del Islam), mas eu me identifico muito mais com o subtítulo (na verdade, o título se deve ao interesse da editora em que aparecesse a palavra "Islão", que é, hoje, por assim dizer, um "gancho"): "La larga crisis del mundo árabe contemporâneo" ("A longa crise do mundo árabe contemporâneo") e é este, precisamente, o tema da obra. A editora é muito conhecida, a difusão foi relativamente boa: estou muito satisfeito. É um livro sobre o que poderíamos chamar ciência-consciência e parece-me que expressa bem qual é meu propósito nestes anos de estudo desse mundo; propósito que não se cifra somente no fato científico (que não diz muito ao homem de nossa época), mas busca aplicar alguns postulados com critérios - sem pretensão - neo-humanistas.

E atualmente, estou preparando um livro - que tenho consciência de que demorarei ainda uns três ou quatro anos até terminá-lo - que versa, em parte, sobre um tema "da moda" - os temas desaparecem e reaparecem em função dos interesses (mais ou menos lícitos ou espúrios) que existem por aí e que influem na ciência (ou no que se considera ciência...) - e que terá por título "El mediterráneo y los árabes". O mediterrâneo virou moda; os ocidentais, de vez em quando, "redescobrem" as coisas que querem descobrir, voltam a ser moda por razões de interesse econômico e político. E tudo isto desvirtua, em boa medida, a autêntica dimensão dos temas e dos problemas: penso que o tema do mediterrâneo está sendo novamente introduzido com umas fórmulas de estudo em boa medida viciadas e adulteradas e pretendo oferecer uma outra visão e um tratamento a partir da perspectiva da ciência-consciência.

JL: Quais são os principais traços da imagem da Espanha feita pelos árabes?

PM: Evidentemente, o ponto de partida é Al-Andalus. Os árabes, quando olham para Espanha, não podem esquecer - e é totalmente lógico, totalmente compreensível - e vêem basicamente aquele mundo que compartilharam conosco. Eu, pessoalmente, também interpreto Al-Andalus como um mundo compartilhado entre eles e nós. E como um objeto de reflexão comum. Então eles partem fundamentalmente desse sistema de vocação; a vocação se projeta em todos os aspectos e, inevitavelmente, isto tem que produzir uma imagem que procura - sem conseguir - conciliar o que foi a glória de outrora com o que é a miséria de agora. Além de ter sido realmente uma das páginas mais gloriosas de toda a história dos árabes e da história hispano-árabe (compartilhada, como dizia...), Al-Andalus foi alçado à categoria de mito - como vocês sabem muito bem, porque a mitificação de Al-Andalus entre os poetas do majhar, principalmente os brasileiros, foi importante - e essa dimensão simbólica sempre tem estado presente: é uma espécie de refúgio, é uma espécie de lembrança de que fomos grandes e de que agora somos miseráveis e estamos decaídos...

Esta, possivelmente, é a imagem central. Também é verdade que junto a esta imagem central, vertebradora, foi se produzindo, ao longo dos anos, com muitas dificuldades, com menos possibilidades de aceitação genérica pelos árabes, a descoberta do que podemos chamar de "a Espanha atual". Esta nova tendência começou muito timidamente na primeira década deste século e foi progressivamente crescendo e, nas últimas décadas, há não poucos ensaístas - mais ensaístas e prosistas do que poetas... -, alguns autores teatrais; mas, fundamentalmente ensaístas e historiadores que procuraram aproximar-se da Espanha. Mas, de qualquer modo, o peso de Al-Andalus continua sendo muito mais importante.

JL: A Espanha ocupa um lugar excepcional de proximidade aos árabes, num Ocidente que lhes é, em geral, tão hostil?

PM: A verdade é que o tema das relações hispano-árabes é "teórico", un tópico, quer dizer, há muito tempo que estamos no plano da retórica: ficamos falando do que teoricamente nos une e deixamos de lado, marginalizando o que talvez não nos uniria tanto. Recordando um verso de um poeta iraquiano, eu diria que, tanto eles como nós: "Continuamos lidando com o mel das palavras". Quero dizer que não estabelecemos relações reais, ficamos mais na realidade virtual do que na realidade autêntica. Progressivamente, esta situação vai-se corrigindo: eu tenho a esperança de que chegará o momento em que entre espanhóis e árabes - naturalmente, dentro dos respectivos contextos de cada um - estabelecer-se-á um diálogo e uma relação absolutamente real, na qual abordemos os problemas tal como são, na qual não tenhamos reparos em dizer as coisas tal como são, na qual nos apresentemos sem reservas. E que deixemos de lado tantas frases bonitas, tantas retóricas e tratemos das coisas tal como realmente são e façamos projetos comuns.

JL: O senhor falou há pouco da Guerra do Golfo. Como vê o futuro possível dos árabes?

PM: Em um de meus últimos artigos, "Final e princípio do século", uma das idéias fundamentais é a de que a situação - em seus traços gerais, estruturais, claro - do mundo árabe e especificamente do Oriente Próximo, do mashriq (quanto ao magrib, seria necessário matizar um pouco...), curiosamente, lembra muito a situação da mesma região no início do século. Isto é, ocorreu uma espécie de retorno à situação de presença colonial aguda - antigamente não dissimulada, agora sim -, que podemos chamar de neo-colonialismo ou de re-neo-colonialismo. No começo do século, o colonialismo se apresentava mais em um esquema político; na atualidade, mais num esquema de penetração econômica (evidentemente, vinculado à política...). Os árabes estão, claramente, numa situação de fraqueza. E a partir de uma situação de fraqueza é muito difícil - para não dizer impossível - lutar contra uma situação de força: há um desequilíbrio nas relações.

E é verdade também que os árabes estão num processo de desunião, de fragmentação interna muito profunda. Eu sempre me interessei muito pelo estudo da mentalidade e da sensibilidade dos indivíduos e das comunidades e - este é um outro fator importante - parece-me que os árabes podem encontrar, com facilidade, certo campo de saída para a irrealidade. Não me refiro a idealismos, mas a irrealismo ou a a-realismo: não ver a realidade tal como ela é. Nesse sentido, exploram pouco algumas possibilidades de dimensão mais racional, de dimensão mais ponderada, de dimensão mais equilibrada - que não contradizem o apaixonamento, quando o apaixonamento tem que se fazer presente... O mundo árabe necessita profundamente de uma reestruturação política e de uma reestruturação social. Como é amplamente conhecido, há um problema fundamental que é o déficit de liberdade: tanto no contexto coletivo, como no individual.

As soluções devem partir deles mesmos e, aproveitando a formulação de um conhecido historiador francês, é necessário um "combate pela liberdade". As fórmulas regeneradoras desta já longuíssima situação de crise têm que partir dos próprios árabes: de fora não virão e, se vierem, virão de modo interesseiro. Com isto não quero de modo algum dizer que o mundo árabe deva viver num isolamento: como todo o mundo, eles devem abrir-se aos outros, mas deve estar claro que as capacidades só podem vir de si mesmos...

JL: Neste quadro, como o senhor vê o problema religioso, por exemplo o fundamentalismo?

PM: Eu, já há muitos anos, venho afirmando que é absolutamente impossível desislamizar o mundo árabe. Ora, trata-se de entender, aproveitar e inserir num processo de desenvolvimento do mundo árabe o que o Islão tem de príncipios criativos e de príncipios reformadores. Ou para usar as palavras mais conhecidas: tolerância, compreensão, cooperação etc. Com isto quero dizer, de um modo muito claro, que não acredito nas fórmulas extremistas nem em que acabem por triunfar. Sim, acredito nas fórmulas que poderíamos chamar de "revolução interna ponderada" (claro, pode parecer a muitos que "revolução" e "ponderação" sejam termos contraditórios...). Enfim, eu creio que se pode dar uma profunda revolução estrutural interior, aproveitando o Islão como um dos componentes....

JL: Há intelectuais no mundo árabe preocupados com esses valores?

PM: No pensamento árabe e islâmico, sim. E há pensadores - e até grupos... - que são muito representativos. Porém, isto está ocorrendo num contexto mais teórico do que no da aplicação prática. Porque há um fato muito evidente: os mecanismos de poder no mundo árabe continuam sendo muito duros e implacáveis. Então, se não há uma profunda transformação desses mecanismos de poder - e isto é um fato político - e uma profunda transformação dos mecanismos sociais - e isto é um fato social -, a verdade é que não haverá solução para os problemas. Eu sou moderadamente otimista: penso que praticamente em todos os países (Egito, Síria, Marrocos, Argélia etc.) há grupos de intelectuais ou indivíduos que - de forma mais ou menos isolada - estão estudando os problemas e tratando de propiciar esses movimentos de profunda transformação a que aludo. Mas, insisto: se não há uma profunda mudança nos mecanismos de poder... Sim, é necessário introduzir fórmulas democráticas, mas, certamente, o processo de democratização do mundo árabe não tem porque ser idêntico ao processo de democratização de outros mundos. Não tem porque ser idêntico nos conteúdos nem nos processos. Nem em termos de quantidade, nem em termos de qualidade.

É necessário que se resolvam os grandes problemas políticos - por exemplo, que o problema palestino tenha uma solução justa -, que não se demore muito (as pessoas se cansam de viver sem perspectiva de futuro)... É um mundo muito complicado, é um mundo que - já há muito tempo - está atravessando uma tremenda situação de crise e - tendo uma visão realista, voltada para os fatos - sou moderadamente otimista, porque continuo confiando na lucidez, que há em muitos pensadores e escritores, como dizia.