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Entrevista

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Aurora Cano Ledesma

(Madrid, 15-4-98. Entrevista, tradução e edição: Jean Lauand)


JL:
Para nós - e acho que o mesmo acontece com todos os pesquisadores que vêm da América - conhecer El Escorial, sua biblioteca e seus manuscritos, causa um impacto muito forte. A senhora - que, há tantos anos, pesquisa e conhece intimamente a biblioteca de El Escorial e percorreu inúmeros de seus códices - poderia falar-nos, a partir desse seu ponto de vista privilegiado, de El Escorial e de sua biblioteca?

AC: El Escorial. No próximo mês de junho haverá uma exposição comemorativa do quarto centenário da morte do fundador: o rei - da coroa dos Áustrias - Felipe II, que é uma figura histórica muito controvertida. Por um lado, temos um príncipe à sombra de um grande rei (que ao mesmo tempo foi imperador) e, por outro, um homem renascentista, mas que, no fim de sua vida, foi obscurecido pela célebre "leyenda negra".

Em que ficamos? Pelo menos do meu ponto de vista de pesquisadora: com seu trabalho intelectual. E aí ocorre algo curioso: não esqueçamos que durante o reinado de Felipe II que durou muitos anos a situação, digamos, no cenário religioso europeu é de convulsão, de revolução: temos a Reforma, a Contra-Reforma etc.

E ao lado da preocupação de evitar ataques à ortodoxia, à unicidade do dogma católico, há, ao mesmo tempo, uma política pragmática real muito interessante e muito avançada para sua época: o rei determinou que fossem destruídos todos os livros - quer se tratasse de manuscritos, de incunábulos ou de impressos - que pudessem atentar contra o dogma; que fossem destruídos todos os exemplares menos dois.

E para onde iam os dois exemplares poupados de cada obra? Para a biblioteca de El Escorial que, na época, estava confiada à ordem de São Jerônimo; depois, por uma série de avatares históricos, temos um período em que não estão lá os jerônimos, mas sacerdotes seculares e, desde o fim do século passado, os agostinianos.

JL: Que há de importante para os pesquisadores de hoje em El Escorial?

AC: Temos fundos (acervos) de manuscritos em diversas línguas: árabe, hebraico, latim, grego, copta etc. Temos incunábulos (que - para o caso da Espanha - são aqueles livros publicados até 1501 - ou, segundo outra classificação, 1502) e impressos posteriores a esta data.

Temos obras únicas no mundo, como por exemplo as Cantigas do rei Alfonso X o Sábio: há dois exemplares, popularmente designados por "as pobres" e "as ricas". Das "ricas" - as que têm maior número de miniaturas - há três exemplares no mundo: um na Itália, outro nos Estados Unidos e o de El Escorial. Das pobres, há no mundo um único exemplar, que é o que está depositado na biblioteca de El Escorial. As pobres são completas; as ricas, incompletas.

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Consideremos dois outros exemplos particularmente preciosos: o Códice Áureo - assim chamado, porque todas as letras

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capitais são de purpurina-ouro -, que pesa cerca de dezessete quilos! E o Códice Vigilano, escrito em latim, onde está o primeiro registro - em zona cristã - dos algarismos atuais! Trata-se de casos únicos no mundo. E assim poderíamos continuar falando indefinidamente dos tesouros desses fundos.

No que se refere a meu trabalho de pesquisa junto aos fundos árabes, comecei-o ao elaborar a tesina - a dissertação de conclusão de curso de licenciatura - estudando um manuscrito anônimo sobre febres.

Este primeiro contato, para mim que tive formação em ciências, foi se propagando, continuando e ganhando corpo ao longo dos anos: em pesquisas, principalmente em Medicina, nos fundos de manuscritos de El Escorial.

Pode-se perguntar: por que Felipe II fez El Escorial? O que o motivava? Bem, uma das hipóteses, a que me parece mais verossímil, é a de que ele quis emular, rivalizar com a Biblioteca Vaticana. Até a estrutura, a decoração - a Gran Sala etc. -, é uma espécie de imitação arquitetônica da Biblioteca Vaticana.

Há uma questão - a propósito dos manuscritos da época de Felipe II, com seu encadernador oficial, Pedro del Bosque - que, à primeira vista, pode desconcertar e é a seguinte: nós, habitualmente, colocamos um livro numa estante de tal modo que a lombada - onde se lê o título, o autor etc. - se volte para o exterior; porém, para o encadernador de Felipe II, a lombada ficava voltada para dentro. Por que isto? Os cantos superior, lateral e inferior estão cobertos de purpurina-ouro e, no canto lateral, inscrevia-se o título em abreviatura latina, de tal forma que, quando era introduzido com a primitiva catalogação, podia-se saber que obra era e, quando o sol incidia sobre os diversos móveis, produzia um efeito espetacular, que impressionava o visitante porque era um sinal de riqueza ver o espetáculo resplandecente da purpurina-ouro.

Havia, então, essa política prática do rei: criar uma biblioteca não só para os estudiosos da Ordem de São Jerônimo, mas para qualquer um que quisesse aprender. Em 1525, lança-se a pedra fundamental e, cinco anos depois, chegam já os primeiros fundos de obras, começando pelos fundos bibliográficos do rei. Na atualidade, temos - no que se refere ao objeto principal de meu estudo: os fundos árabes - quase seis mil códices.

Lamentavelmente, houve vários incêndios em El Escorial; especialmente o de 1661 foi terrível: afetou todo o mosteiro e só poupou a basílica. Há descrições muito vivas de como os frades, tanto sacerdotes, como irmãos leigos - à medida que o incêndio ia avançando - se esforçam por salvar esses fundos: e vão lançando as obras ao Patio de Reyes. Então, encontramos casos de obras com margens inferiores completamente estragadas; em outros casos, até dá medo de levantar uma folha porque está em estado lamentável; em outros ainda, nota-se o efeito da água para apagar este pavoroso incêndio...

Houve outras perdas por ocasião da guerra de independência espanhola, quando da invasão francesa: parte desses fundos foram "levados" para a França e só foram recuperados alguns, muito poucos.

Outro incidente caótico: a guerra civil espanhola (ou, se se prefere, "incivil"...). Nessa circunstância, esses fundos foram levados para a Biblioteca Nacional e quando - terminada a guerra - deviam retornar a seu lar original, algumas obras também "voaram" (sem asas, mas "voaram"...).

Seja como for, o pesquisador que recorra a El Escorial vai encontrar fundos de muitíssimas ciências: alguns são belíssimos; outros permitem ver o esqueleto da magnificência que tiveram (porque sobrou somente o esqueleto...) etc.

Felipe II sabia valorizar a cultura e isto se nota, por exemplo, na atuação de seus embaixadores: o embaixador em Portugal envia-lhe uns fundos que são ímpares, códices feitos de papel de arroz, dizendo que se trata de obras "em línguas estranhas"... Essas "línguas estranhas" são o chinês, o árabe e o hebraico.


E obtiveram-se fundos que vinham com sua encadernação peculiar: cada proprietário tem seu sinal de identidade. Por exemplo, os fundos do próprio rei se distinguem por uma coroa de louros e uma grelha. A grelha é o símbolo do martírio de São Lourenço: é o ex-líbris dos fundos de El Escorial.

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Já o ex-líbris desse embaixador é uma coroa de louros e no meio duas palavras "Meruisse Satis" ("suficiente para merecer").

Há, naturalmente, uma infinidade de detalhes sobre o acervo de El Escorial, sobre o que se pode encontrar atualmente. E há muito material que ainda não foi publicado.

Lamentavelmente, em El Escorial não se faz uma exigência que em outras bibliotecas, sim, é feita: quando se requisita a cópia de um determinado manuscrito, não se exige do pesquisador que, no caso de publicação (em forma de tese de doutorado, artigo, livro etc.), envie um exemplar para o acervo de El Escorial. Isso permitiria dispor de um arquivo perfeitamente organizado de publicações feitas com base nos fundos, como ocorre em outras bibliotecas.

JL: E como é seu trabalho de pesquisadora em El Escorial?

AC: Todas as terças-feiras, pesquiso em El Escorial. Para explicar em que consiste meu trabalho, devo, antes, expor alguns dados.

Existe um catálogo em latim do século XVIII, com as obras perfeitamente apresentadas, mas todas com a catalogação da época. Como houve perdas, incêndios, "desaparições"... no final do século passado, um francês, Derenbourg faz uma catalogação dos fundos que havia então. Sua obra compõe-se de três tomos e temos catalogadas quase todas as matérias dos fundos árabes (menos de Direito). Acontece que esse é um catálogo descritivo, mas não um Índice (de autores, de temas ou títulos). Um exemplo: queremos saber se existe alguma obra de Ibn Sina nos fundos árabes de El Escorial... Antes, era necessário ler os três tomos dos Manuscrits arabes de L'Escurial de Derenbourg para extrair os títulos de Ibn Sina nos fundos árabes; o trabalho que estou realizando é o de elaborar uma "ferramenta de trabalho" para os pesquisadores, elaborar índices que permitam agilizar essa pesquisa dos fundos árabes.

Quem procura, por exemplo, Ibn Sina (se alguém o conhece como Avicena, encontrará: "Avicena - veja-se Ibn Sina"), encontrará a relação de todos os manuscritos nos quais aparecem obras dele.

Ofereço, além disso, as duas catalogações: a de Derenbourg, a atual, e a anterior, a de Casiri (um sacerdote siro-maronita que trabalhou para o rei Carlos III e fez este trabalho importantíssimo: uma nova catalogação, digamos, à luz do movimento enciclopedista francês, com critérios ultra-modernos - para a época, claro: para o séc. XVIII).

Temos, pois, estas duas referências: Casiri e Derenbourg. O mais cômodo é encontrar um códice que tenha uma obra só; mas, às vezes deparamos - eu mesma tenho encontrado - códices com vinte ou trinta opúsculos: e é preciso cotejar cada uma, ver se a descrição dada por Derenbourg é correta etc.

Em algumas ocasiões tenho encontrado verdadeiras jóinhas, folhas omitidas por Derenbourg e que constituem pequenas obras e disponho já de um fichário para, quando puder, fazer diversas publicações desses opúsculos...

Outro estudo é o das encadernações. E é muito fácil rastreá-las. Por exemplo, na fase intermediária dos jerônimos aos agostinianos, a biblioteca de El Escorial teve um padre polonês como diretor, Pe. Rozansky, e todas as obras encadernadas sob sua supervisão são facilmente identificáveis: estão encadernadas em pele preta e têm as armas pontifícias.

Há questões curiosas sobre os códices.

Casiri fez, para a maioria deles, um breve resumo do conteúdo da obra em duas ou três linhas em latim. Em outras ocasiões, temos duas ou três linhas de resumo em escrita magrebina árabe, em castelhano e em latim (feitas por três diferentes...).

Em outros casos, podemos rastrear quem era o dono da obra.

Hoje em dia, quem está livre do fisco, de declarar bens ao imposto de renda? Bem, há um caso curiosíssimo de Diego Hurtado de Mendoza, que foi embaixador de Felipe II.

Foi um amante da cultura clássica e da cultura em geral. Terminou seus dias em Granada, em Sacro Monte, num palacete. E há um dado importantíssimo para a cultura árabe: Diego Hurtado de Mendoza comprou inúmeros manuscritos árabes. Quando ele morre, seus herdeiros se encontram com um grave problema de dívida de declaração de renda junto à Coroa. E para escapar do fisco, resolvem doar os fundos de todos os manuscritos de sua grande biblioteca a El Escorial: uma doação estimada, na época, em sessenta mil ducados (não sei exatamente quanto seria no câmbio de hoje, mas, certamente, muitos milhões de pesetas). São obras facilmente identificáveis pelas iniciais D.D.H. (Don Diego Hurtado).

Outra etapa de grande obtenção de fundos foi por ocasião do aprisionamento - em época de convulsão política - de uma galera árabe do reino do norte do Magreb, de Marrocos, no século XVII, na época de Felipe III.

Duas galeras espanholas abordam a árabe e é trazida para a península toda a carga, que incluía a biblioteca do Emir Mulay Zidan.

Quando vem a paz, surge a reivindicação de devolução desses fundos. Ora, a exigência habitual do monarca espanhol, nesses casos, era a de restituição de cativos cristãos no emirado magrebino e como, na época, não havia prisioneiros cristãos a devolução foi sendo "adiada". A reclamação era constante e, de vez em quando, se entregavam alguns manuscritos...

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(Alcorão da Biblioteca do Emir Mulay Zidan)

 

São identificáveis porque trazem escrito em letra de purpurina-ouro a legenda: "Dos livros do Emir etc." (Min kutub...). Na atualidade restaram cerca de dois mil códices desse acervo.

JL: Que pesquisadores têm acesso à biblioteca?

AC: Antes, existia uma espécie de protocolo de apresentação: uma carta de um orientador de pesquisas. Hoje, qualquer pessoa interessada nos fundos da biblioteca de El Escorial, apresentando somente sua documentação pessoal - a carteira de identidade espanhola ou passaporte -, assina o registro geral de visitas e indica que fundos quer consultar: manuscritos latinos, castelhanos, gregos etc.

Há um fichário geral e já está em andamento o processo de informatização dos fundos. El Escorial está fazendo o mesmo que se fez em Sevilha, na Casa de Contratación: os fundos estão sendo microfilmados.

Seja como for, o visitante ou o pesquisador não está obrigado ao incômodo de ler em microfilme: pode ler o original, se o estado físico da obra for razoável. Se lhe interessa uma parte da obra ou a obra inteira, pode solicitar a microfilmagem ao padre bibliotecário, que é o Pe. Teodoro Alonso Turienzo.

JL: E quantas pessoas pesquisam lá num dia comum?

AC.: A capacidade é para dezesseis consulentes e o normal - quando não faz muito frio, porque a região é muito fria... - é que haja meia dúzia de pesquisadores; se bem que há dias em que está lotado e é preciso trazer mais cadeiras para que todos possam trabalhar...

El Escorial está a 60 km de Madrid numa região muito bonita da serra madrilenha e pode-se facilmente ir de carro, de trem ou de ônibus.

O recinto é confortável e a paisagem é belíssima: o local - do ponto de vista estético - foi muito bem escolhido por Felipe II para a construção desse singular complexo arquitetônico em que temos dois palácios (o dos Áustrias e o dos Bourbons), além do complexo religioso (o mosteiro, a basílica e as dependências dos frades agostinianos, onde também existe um seminário de formação de futuros religiosos).

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JL: E quando começou este seu trabalho dos Índices de El Escorial?

AC: Desde 1993, dirijo-me regularmente um dia por semana a El Escorial, para trabalhar nos índices. A obra, que eu qualifico de "ferramenta de trabalho para os pesquisadores", é uma modesta tentativa de ajudar os outros pesquisadores, porque eu mesma - nestes anos de pesquisa em El Escorial- encontrei grandes dificuldades.

Por exemplo, quando procurava manuscritos que tratassem da tríaca - o antídoto universal contra venenos - tive que ler os três volumes do catálogo de Derenbourg!!


Foram dificuldades como essa que me motivaram a empreender esse trabalho. Eu o intitulei "Indización de los manuscritos árabes de El Escorial" (e enfatizo de propósito o "El Escorial", por uma razão muito simples: habitualmente, os espanhóis falam: "Donde vas? Al Escorial", "De donde es esto? Del Escorial", mas o lugar se chama "Real Monasterio de San Lorenzo de El Escorial". E o povoado em que se situa e que surgiu depois do mosteiro chama-se "San Lorenzo de El Escorial").

Quanto à palavra do título "indización", devo confessar que passei bastante tempo procurando uma palavra para algo tão simples como apresentar uns índices.

No dicionário da Real Academia, encontra-se "indización" e "indexación"; como esta parece estar mais ligada à informática, optei por "indización".

No tomo I, temos os temas: Moral, Política, Medicina, História Natural, Matemática, Magia, Astronomia e Astrologia.

Cada um destes setores temáticos recebe a distinção usual: títulos, autores, comentaristas, autores anônimos e, por último, algo que denominei "conteúdos". Com este termo genérico, refiro-me àquelas obras que não estão completas, portanto que podem ser acéfalas, sem o início; ou sem cólofon, inconcluídas; ou ainda, pequenos fragmentos, dos quais é impossível determinar autor ou título.

No tomo II, com a mesma estrutura metodológica do primeiro, temos: Gramática, Retórica, Poesia, Adab, Lexicografia e Filosofia.

Nestas diversas seções, podemos encontrar obras, nas quais se indica precisamente - e o leitor pode detectar - que a cópia foi realizada para uma importantíssima biblioteca. Existe um livro, o "Libro de las sutilidades de los animales", que é um livro de medicina - ou melhor, misto de medicina e magia: de práticas usuais e rituais para cura de doentes - e vemos que as miniaturas nas folhas têm um fundo de purpurina-ouro e a letra é esmeradíssima: trata-se, portanto, de uma cópia encomendada por uma grande biblioteca.

Noutros casos, é admirável a precisão de uma Geometria, de um tratado geométrico... E há obras - como as de Al-Biruni ou de outros- nas quais, sem saber árabe, percebe-se perfeitamente do que se trata: "isto é o teorema de Pitágoras", pois está desenhado com absoluta perfeição de linhas.

Pode-se apreciar uma extraordinária riqueza de conteúdo - da ciência exposta - e da forma com que se apresenta ao leitor... Há, certamente, outros casos em que o copista foi pouco minucioso, pouco cuidadoso: faltam sinais diacríticos nas palavras etc. E chega um momento em que o pesquisador amaldiçoa a falta de precisão do copista, porque há palavras absolutamente indecifráveis. Ou o caso daquele copista que nos legou um borrão de tinta no meio de uma folha...

Curiosidades à parte, simplesmente o fato de ter entre as mãos uma obra que, pela datação, sabemos que tem dez séculos ou mais, é verdadeiramente um prazer quase físico; não é só um prazer intelectual... É a sensação de embarcar numa máquina do tempo, ao ter a obra nas mãos. A beleza, por exemplo, do papel. Em Al-Andalus, na Espanha muçulmana, cria-se logo uma indústria, uma manufatura de papel, com toda sua história, sua lenda (em Samarcanda, um prisioneiro chinês que ensina a fazer papel, a partir do casulo da seda etc.). Enfim, muito cedo, chega à Península Ibérica a técnica do papel, unida, além do mais, a uma circunstância muito favorável do ponto de vista prático: não esqueçamos que, por vezes, um adjetivo que se pode aplicar à civilização árabe-islâmica é "prática", "pragmática". Tenhamos em conta que, em Espanha, uma criação intensa do bicho-da-seda não era viável na época e, então, o que fazem é recorrer a trapos, a tecidos velhos e trabalhar com eles. E, dentro do Levante espanhol, a atual Játiba na província de Valência ganhou fama como produtora de papel. Há documentos - tanto na Coroa de Aragão como na Coroa de Catalunha - em que se faz constar que o papel usado era de Játiba, um papel acetinado belíssimo, com uma qualidade incomparável: uma publicação de nosso século, digamos dos anos 40; já está toda amarelada, sem cor, enquanto aqueles livros mantêm uma beleza acetinada impressionante.

E, claro, quem quiser pesquisar em outros fundos, também encontrará muito material: há obras curiosíssimas, sem similar no mundo todo, como por exemplo, um calendário asteca em madeira...

JL: Como é a preparação específica - digamos, em paleografia - que se dá aos alunos para permitir a leitura de manuscritos no original?

AC: Essas matérias são mais próprias da especialidade de História e não de Filologia Árabe. Em todo caso, com alunos do terceiro ano, trabalho com fotocópias de textos antigos com os diversos tipos de escrita árabe e inclusive, já desde o primeiro ano, começam a estudar como diferenciar, em manuscritos, a escrita mashriqi (oriental) da magrebi (ocidental) - no caso, são muito marcadas as diferenças nas letras F e Q. Lamentavelmente, não dispomos da matéria Paleografia Árabe em nosso curso: seria um complemento maravilhoso, mas não esqueçamos as demandas da sociedade: hoje em dia, encontram, digamos, mercado editorial, os estudos contemporâneos (a sociologia, a história, a literatura, o pensamento contemporâneos).

Não é que se tenha abandonado os estudos medievais ou clássicos da cultura árabe, mas a demanda comercial se impõe. Infelizmente, nós não somos uma instituição que possa ter relação com empresas, ter patentes de produtos comerciais... só podemos oferecer assessoria no que se refere às relações com o mundo árabe contemporâneo... Naturalmente, sem conhecer o mundo árabe clássico é impossível conhecer o contemporâneo - suas raízes, sua problemática, suas heranças-, essa entourage, esse legado cultural que recebemos...

E por que é importante que o aluno atual, cujos interesses estão em outras linhas de pesquisa, conheça esse embrião do mundo árabe contemporâneo? Por que só assim se pode discernir o que é visão deformada de um arabista inglês, francês ou mesmo espanhol daquilo que é contexto intrínseco neste momento atual.

Sem conhecer os fundos, sem conhecer, digamos em literatura, um Abu-Nuwas, é impossível encontrar símbolos na literatura contemporânea: "por que este poeta trata de tal questão?". Claro, este poeta - da Síria, do Egito etc. - recebeu formação em sua literatura clássica e isto emerge depois com uma simbologia especial.

Falo por experiência própria: minha tese de doutoramento foi sobre uma mulher nascida em 1923 no Iraque, em Bagdad. Esta mulher, Názik al-Malá'ika (de que trato em Collatio 1) oferece-nos, por vezes, símbolos tão complexos que, se não se conhece a literatura árabe clássica, é impossível decifrá-los (ao lado, no caso, de influências de um Eliot, de um Ezra Pound etc. que ela também estudou profundamente)...

JL: Tão impossível como pretender estudar literatura espanhola contemporânea, sem conhecer o Quixote ou Lope de Vega...

AC: Sempre que posso, ao trabalhar com as diferentes turmas que passam por minhas mãos - quer seja de Língua Árabe ou de História da Ciência no Islão ou de doutorado - costumo levar, quando há tempo e condições, um grupo, de oito ou dez pessoas, para trabalhar uma manhã no mosteiro de El Escorial: uma sessão de codicologia, estudar códices na biblioteca.

Peço a devida licença e deixam à minha disposição o "Salão de Verão", que faz jus ao nome porque é muito frio. O que pretendo - além de apresentar-lhes as obras mais vistosas - é que estes alunos em formação aprendam a valorizar algo particularmente importante para a época atual, em que, muitas vezes, surge a mancha do racismo: este "outro" que temos diante de nós, infelizmente para a maioria da população espanhola, é o emigrante ilegal, sem visto de permanência. Ele foge de uma situação deplorável em seu país, pensando que aqui será melhor. Pretendo que esta imagem deformada do "outro" - qualquer que seja a matéria que eu lecione - seja apagada de suas mentes e aprendam a valorizar, ou, pelo menos, conhecer. Porque, sem conhecer a fundo, não se pode odiar nem amar nenhum outro grupo étnico.

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Fontes de ilustrações:

http://www.bibliophily.com/
http://www.banesto.es/banesto/escorial/e9700010.htm

Veja também os sites:
http://web.jet.es/~rolandgh/monasterio.htm
http://www.mn6.com/municip.inf/escorial/home.htm

Referência Bibliográfica: CANO LEDESMA, Aurora - Indización de los Manuscritos árabes de El Escorial; v. I e II, Real Monasterio de El Escorial, Edic. Escurialenses.